12 CAETANOS PARA 23
Caetano Veloso completou 80 anos em agosto. Lembro, quando criança, de ouvi-lo cantar “Debaixo Dos Caracóis Dos Meus Cabelos”, que o Roberto e o Erasmo compuseram pra ele, e talvez pensasse que tinha sido feita pra mim, já que os meus cabelos eram puro caracol e eu estava debaixo deles.
Na minha casa não havia discos do Caetano. As minhas irmãs eram Chico e “O que será que será” ressoava pelo apartamento afora como um mantra. Mas em 81 eu comprei o “Outras Palavras” e aí não parei mais. Era uma época em que os medalhões da MPB lançavam uma bolacha por ano, e a gente era instigado a passar os meses esperando o novo da Gal, o novo da Bethânia, o novo do Milton, o novo do Gil, e, claro, o novíssimo do Caetano. A emoção de encontrar o disco na loja, levá-lo pra casa, tirá-lo da capa e colocá-lo pra tocar – a agulha da vitrola encostando no sulco do vinil e extraindo aquele estalido típico da onda sonora – é, até hoje pra mim, insubstituível.
O primeiro show que vi do Caetano foi “Uns”, dançando com a minha turma na pista do Canecão, num tempo em que deixavam um vão livre entre as mesas perto do palco da cervejaria mais famosa da cidade daqueles anos. Eu fazendo cursinho pré-vestibular e o baiano cantando que “Nosso amor não deu certo/De perto fomos quase nada”. Era uma época em que eu sonhava conhecê-lo pessoalmente, mas, tiete tímido que eu era, de perto, teríamos sido como a música: quase nada.
Lembro que emprestei o LP homônimo do show a um colega do cursinho para que ele o gravasse em fita-cassete. Ele fez a cópia numa fita BASF 45 minutos, e depois veio com um papo de que não coubera as duas últimas faixas do lado B, mas que ele também não fazia questão, já que a última – “É Hoje” – era um samba-enredo não exatamente do seu gosto, e a penúltima – “Salva Vida” – tinha uma temática gay – o que me pareceu um comentário enrustido.
Vamos, pois, abrir a playlist das 12 canções de Caetano para embalar os meses do ano que começa fazendo jus a ela:
JANEIRO – “SALVA VIDA” – Bethânia participa da faixa, dobrando vozes com o irmão num hino à beleza masculina fundida à paisagem e cantada a plenos pulmões: “Místico pôr-do-sol do mar da Bahia/E eu já não tenho medo de me afogar/Conheço um moço lindo que é salva-vida/Um da turma legal do Salvamar/Ai, ai, quem dera/Eu também pertencera a essa raça”.
FEVEREIRO – “GENTE” – Uma canção que congrega todas as raças, refunde o ato civilizatório apontando sua seta para uma visão otimista do que devem ser todas as gentes. “Gente quer ser feliz/Gente quer respirar ar pelo nariz/Gente é pra brilhar/Não pra morrer de fome”.
MARÇO – “TEMPO DE ESTIO” – Continua a lista de desejos nos versos da canção que é puro hedonismo carioca: “Quero comer/Quero mamar/Quero preguiça/Quero querer/Quero sonhar/Rio: eu quero suas meninas”.
ABRIL – “NU COM A MINHA MÚSICA” – Novamente a visão otimista se impõe numa esperança de país solidário: “Vejo uma trilha clara pro meu Brasil/Apesar da dor/Vertigem visionária que não carece de seguidor/Eu, que existindo tudo comigo/Depende só de mim/Coragem grande é poder dizer sim.”
MAIO – “TREM DAS CORES” – Aqui uma descrição da paleta de cores do cenário serve de fundo infinito para o corpo da musa que inspirou o poeta: “Os átomos todos dançam/Madruga/ Reluz neblina/As casas tão verde e rosa que vão passando ao nos ver passar/E o mel desses olhos luz/mel de cor ímpar”.
JUNHO – “UNS” – Numa letra enigmática, de palavras monossílabas, Caetano condensa e expande a possibilidade una e múltipla do ser: “Uns vão/uns tão/uns são/uns dão/uns não/uns hão de/uns dizem sim/uns dizem fim/e não há outros.” Novamente a positividade dos sins costurando o tecido do tempo como átomos.
JULHO – “ORAÇÃO AO TEMPO” – E depois de elogiar homens, mulheres, paisagens e cores, Caetano reverencia o deus invisível: “Tempo, vou te fazer um pedido/De modo que o meu espírito ganhe um brilho definido/E quando eu tiver saído para fora do teu círculo/Não serei nem terás sido/Ainda assim acredito/Ser possível reunirmo-nos/Num outro nível de vínculo”.
AGOSTO – “JOSÉ” – Canção triste, hermética, cantada em tom grave para enfatizar o fundo escuro contraposto à luz. Fotografia estática de um futuro em construção: “Estou no fundo do poço/Meu grito lixa o céu seco/O tempo espicha mas ouço/E eco de um fado certo/Enquanto espero/Só comigo e mal comigo/No umbigo do deserto”.
SETEMBRO – “O HOMEM VELHO” – Caetano olha para o passado e faz refletir o velho que será no futuro. “O homem velho deixa vida e morte para trás/Cabeça a prumo/Segue rumo e nunca, nunca mais/O grande espelho que é o mundo ousaria refletir os seus sinais/As coisas migram e ele serve de farol.”
OUTUBRO – “MUITO ROMÂNTICO” – Aqui reacende a chama da esperança na capacidade individual de mover o coletivo. Função do artista: agitar massas, apontar caminhos. Canto seco expandido por coro à capela. “Nenhuma força virá me fazer calar/Faço no tempo soar minha sílaba/Tudo o que eu quero é um acorde perfeito maior/Com todo mundo podendo brilhar num cântico.”
NOVEMBRO – “SETE MIL VEZES” – O amor sempre decantado, passado revivido na lembrança e atualizado. “Todas as coisas são belas/Quando uma hora é grande e bonita/Assim quer se multiplicar/Quer habitar todos os cantos do ser/Quarto crescente pra sempre um constante quando/Eternamente o presente você me dando”.
DEZEMBRO – “ALEGRIA, ALEGRIA” – A força estranha, o dom de iludir, o quereres, a luz do sol. “Caminhando contra o vento/Sem lenço e sem documento/No sol de quase dezembro/Eu vou/Os olhos cheios de cores/O peito cheio de amores vãos/Nada no bolso ou nas mãos/Eu quero seguir vivendo.”
Caetano segue vivendo. Nós também. Que alegria. Todas as coisas são belas, e 2023 não há de ser diferente. Felizes anos novos.
Rodrigo Murat é escritor
Imagem: Foto de Caetano feita por Fernando Young