A ARTE DE ESCREVER A PRÓPRIA VIDA
A ARTE DE ESCREVER A PRÓPRIA VIDA
Todos carregamos dentro de nós o Autor Bom e o Autor Ruim. Isso não é exclusivo de quem faz da escrita profissão. Afinal, somos todos redatores das próprias vidas, e não escapamos das sucessivas encruzilhadas diárias onde muitas vezes precisamos decidir rápido o caminho a tomar.
O Autor Ruim, o nome já diz, é aquele que sorrateiramente se interpõe e ludibria, com macaquices de prestidigitador, o Autor Bom. Por isso é tão importante caminhar com calma e reescrever – se não a vida, que nem sempre dá a chance – os textos que saem de nossas caixolas. Deixemos que eles descansem em gavetas. Transcorrido algum tempo, ficará mais fácil, ao relê-los, separar o joio do trigo, reconhecer o que é obra do Bom e intermédio do Ruim.
Por diversas vezes não obedeci a esta regra de ouro e recaí no erro do autoengano. Entusiasmado pelo calor da obra, distribui textos a atores e editores na esperança rápida de que fossem montados e publicados. Certa vez – não existia ainda o e-mail – deixei na casa de Marisa Orth uma comédia. Chamava-se “Papo Cabeça” e abordava, em duas histórias, a relação sedutora entre analista e analisando, tendo, como cenário, um consultório. Dias depois, telefonei para saber o que ela tinha achado, e ela elogiou o envelope. De fato, era um envelope lindo, comprado na papelaria mais cara, em papel couchê reproduzindo um excerto do mapa-múndi. Tempos depois, ao reler a enjeitada, me assustei com a baixa qualidade do negócio. Oitenta por cento dos diálogos tinham sido escritos pelo Ruim, e o Bom, por pressa ou preguiça, assinou embaixo.
Anos depois, tentei Beatriz Segall. Não me recordo de como fiz chegar “Selena” à ela – bem, já existia o e-mail. “Selena” era uma tentativa de drama psicológico abordando o relacionamento conturbado entre uma mãe egoísta e uma filha alcóolatra. Eu devia estar desesperadamente tentando virar O´Neill ou Bergman, como se virar O`Neill ou Bergman fosse uma questão de escolha ou de apertar a tecla SAP. Telefonei para saber o diagnóstico, e veio ao bocal uma empregada: “Dona Beatriz está dormindo”. Tentei ainda umas quatro vezes, mas como dona Beatriz estivesse sempre dormindo – depois entendi que “dormindo” era um eufemismo para “deitada” – desisti. Até que um dia meu telefone toca e é ela, dona Beatriz Segall, desembaraçando-se do assédio e sugerindo que eu encaminhe o texto a Eva Wilma. Me senti como um revendedor Avon. Não que ela tenha sido grosseira ou me destratado, mas é que tentar vender uma peça não é muito diferente do que tentar vender um perfume ou uma loção para barba. “Selena”, claro, jamais saiu do papel, mas serviu, ao menos, para que eu tivesse meu dia com Odete Roitman.
Anos depois, escrevi outra peça e, seguindo a sugestão de Beatriz, enviei-a à Eva. Deixei na portaria de seu prédio sofisticadíssimo no Leblon. Fui de Ipanema a pé pelo calçadão da praia – optei dessa vez por um envelope pardo – e, como era verão, cheguei lá suadíssimo. Office-boy de mim mesmo, jamais poderia subir ao apartamento, e deixei o texto com o porteiro semiescondido por trás do envidraçado fumê. Dessa vez não telefonei. Foi Eva quem, gentilmente, me procurou para agradecer muitíssimo o convite mas rechaçá-lo, sob a alegação de que estava com problemas pessoais.
Isso tudo que acabo de relatar não é muito diferente do que acontece na vida de quem não faz da escrita profissão. Quantas vezes não nos arrependemos não só de peças, mas também de atitudes inadvertidamente tomadas pelo dedo podre do Autor Ruim e não nos autoflagelamos por raiva, culpa, remorso ou ânsia de querer corrigir a rota? Ah, se eu tivesse feito isso; ah, se eu tivesse dito aquilo. Estamos o tempo todo reescrevendo mentalmente nossa história.
No livro que acabo de ler – “O Presidente Negro”, de Monteiro Lobato – há a seguinte fala da personagem Miss Jane:
“- Que vaidosos os moços! Lembre-se de meu pai. Quantas vezes fazia e refazia a mesma experiência, com uma paciência de beneditino! Por isso venceu. Lembre-se do esforço incessante de Flaubert para atingir a luminosa clareza que só a sábia simplicidade dá. A ênfase, o empolado, o enfeite, o contorcido, o rebuscamento de expressões, tudo isso nada tem com a arte de escrever, porque é artifício e o artifício é a cuscuta da arte. Puros maneirismos que em nada contribuem para o fim supremo: a clara e fácil expressão da ideia.”
Escrever também a vida sem afetações deve levar a melhores resultados. Viver com simplicidade, através de frases curtas, sem rococós e floreios. Sejamos claros e não nos arrependamos tanto. Afinal, se Deus escreve certo por linhas tortas – como tantas vezes prega o repetido ditado –, por que não tentar encontrar na imperfeição o resultado certo?
Texto: Rodrigo Murat é escritor
Imagem de Free-Photos por Pixabay