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AluCine – A MORTE E A MORTE DO DEMÔNIO

a morte do demônio

AluCine – A MORTE E A MORTE DO DEMÔNIO

A Morte e a Morte do Demônio

– Diz aí, quais que você já viu? – dizia meu pai.
– Já vi! Já vi! Já vi! Já vi!… – enquanto eu ia apontando na sequência todas as caixas de filmes da prateleira de terror da locadora.

Ele se divertia observando e eu seguia listando todos os que eu já havia visto, sem pular nenhum. E a verdade é que enquanto não chegassem as novidades eu ficava refém dos mesmos filmes, muitos assistidos e reassistidos inúmeras vezes.

Nesta quarta e última parte da mini saga do videocassete, relembro como entrei na locadora uma certa tarde, como inúmeras outras, logo após sair da escola na hora do almoço, e me deparei com ela, logo na frente. Era uma caixa de VHS branca, uma caveira vermelha se destacava ao centro num design minimalista, abaixo da caveira, também em letras no mesmo tom de vermelho lia-se “A Morte do Demônio” (1981). Se aquilo tudo era uma campanha de marketing ela estava sendo muito bem sucedida porque me pareceu algo totalmente proibido. Receosamente estiquei a mão e toquei na caixa amaldiçoada. Atrás um breve texto bem preguiçoso relatava que um grupo de jovens era atacado em uma cabana isolada por uma entidade demoníaca. Havia ainda algumas frases de efeito sensacionalistas dizendo ser o maior filme de terror já feito, etc.

“Pior que ‘O Massacre da Serra Elétrica’?” (1974), pensei. Se fosse, era um feito e tanto, porque o filme de Leatherface e sua família já tinha me dado uma boa cota de pesadelos que duraram alguns dias.

Levei o filme ao balcão e o aluguei com uma culpa similar à daqueles que ousaram um dia saquear as tumbas dos faraós e carregaram algum encosto para suas vidas.

De qualquer forma fui eu para casa e em uma tarde escura, nublada, cortinas fechadas, o silêncio de um dia de semana em um prédio em que a maioria das crianças e adolescentes iam para a escola à tarde enquanto seus pais estariam trabalhando empurrei a fita para dentro do video. O que se sucedeu foi uma experiência cinematográfica totalmente nova e cativante. O filme era um delírio completo. A edição era ágil. Os efeitos sonoros eram ininterruptos e totalmente inovadores. As criaturas eram realmente ameaçadoras. Havia uma precariedade que deixava tudo mais mundano e palpável. Uma granulação áspera nas imagens que dava um ar amador e por isso mesmo adicionava camadas de estranheza no pacote. Terminada a sessão eu rebobinei o filme e o coloquei de novo para assistir. Ainda queria entender o que havia se passado.

Talvez eu tenha assistido ainda uma terceira vez naquele mesmo dia, mas, se não foi no mesmo dia, foi poucos dias depois, porque eu passei a alugar o filme com certa frequência. Queria mostrar aos amigos e amigas. Queria que sentissem aquela maravilha da cinematografia como eu havia sentido.

Lembro que a última vez em que havia pedido a contagem, na própria locadora, de quantas vezes eu já havia alugado o filme, o número que me deram era 12! Ou seja, eu já havia alugado o filme 12 vezes. Assistido, então, não menos que umas 18 vezes. Quando consegui gravar o filme para mim, numa ligação que fiz com dois videocassetes interconectados, ele passou a ser o pano de fundo para festas que aconteciam em casa, para bolos de aniversário enquanto cantavam parabéns para mim. Cenário para conversas na sala com amigos. Sempre lá estava ele, sendo exibido no mudo com suas imagens preenchendo as lacunas entre os pensamentos e as palavras.

E justamente hoje em dia, que eu já perdi a conta faz tempo de quantas vezes já observei Ash Williams jogar o livro dos mortos na fogueira, mas que já passa de 30, certamente, resolvi mostrar o filme para minha namorada, que nunca o havia visto!

– Como assim você nunca viu “A Morte do Demônio”? – disse eu, misturando uma falsa indignação e um certo prazer em poder novamente fazer papel de cicerone para uma inocente alma ainda não iniciada nos horrores daquela cabana isolada.

Coloquei o filme e esperei ansiosamente enquanto via as cenas já há muito decoradas do carro amarelo se movendo pela ponte condenada, do ameaçador balanço no alpendre, etc.

– Nossa! Mas como esse filme é velho! – ela diz.
– Não é tão velho assim…
– Mas a imagem, não sei… parece velha. É certamente mais velho do que o que assistimos ontem.
– Bom, na verdade não. – Havíamos assistido a “Era uma Vez no Oeste” (1968) na noite anterior.

O filme segue e os amigos acham um gravador antigo no porão, Cheryl é atacada pela floresta e, na cabana, ela se transforma em um demônio…

– Está errada essa proporção. Como é que ela andou só um pouquinho e agora já está tão longe assim da cabana? – reclamava a crítica de cinema a quem eu havia me atrevido a mostrar essa pequena pérola do cinema de horror.

E logo depois:

– Mas de onde vêm esses barulhos? Do nada a madeira faz barulho?

E ainda:

– Essa câmera não está torta, não?

E foi isso… o demônio foi morto uma segunda vez (e Jorge Amado há de me perdoar o roubo do título) pois minuto a minuto a obra outrora tão celebrada por mim foi sendo massacrada, dilapidada, questionada em suas bases mais fundamentais. Era uma surra sem precedentes. Sam Raimi, o diretor, certamente teria ficado com vergonha e pedido desculpas se tivesse acompanhado aquele linchamento a que foi submetido.

– Vamos tomar um sorvete? – sugeri acanhadamente enquanto os créditos finais rolavam, tentando distrair.

Por sorte ela aceitou, e os demônios ficaram restritos ao seu pequeno mundo da cabana isolada e daquelas solitárias tardes da minha infância.

Texto: Lupe Romero é atriz, musicista, performer e escritora.
Lupe Romero

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