A VOLTA AO ANO EM 40 FILMES
2023 vai indo embora e, no folhear da agenda para rever fatos transcorridos, a impressão que vem é a de que os meses são, na verdade, dias, em que novembro é véspera de dezembro; dezembro, véspera de janeiro; janeiro, véspera de fevereiro, e, assim por diante, até se perfazer o ciclo de uma semana de doze dias.
Gira o calendário e seguimos comentando – “Como esse ano voou!” – como se com os anteriores não tivesse se dado o mesmo. É um clichê que repetimos meio que no automático, até porque, se parássemos nossas vidas e ficássemos encarando o relógio por trezentos e sessenta e cinco dias, veríamos como o ano, na verdade, se arrasta. E é por
isso – para que o tempo passe – que inventamos os passatempos.
Um dos meus prediletos é ir ao cinema. Parar tudo e ver a vida na tela por duas horas. Esse ano, foram, aproximadamente, quarenta tentativas. Uma marca baixa – se comparada a anos anteriores – e ridiculamente ínfima – se comparada a meus anos de juventude, quando – durante eventos como o FestRio, o Rio Cine ou a Mostra de Cinema de
São Paulo – eu chegava a assistir quatro longas por dia e, eventualmente, alguns curtas.
Era uma delícia começar a maratona às 8 da manhã no lendário Hotel Nacional da praia de São Conrado, sede do FestRio durante os anos 80/90. Os filmes que eram exibidos à noite nas sessões de gala passavam antes de manhã para jornalistas e penetras – meu caso. Foi assim que descobri, entre outras boas surpresas, Pedro Almodóvar, ainda desconhecido no Brasil, e seu filme “O Matador”. Lembro que nos créditos iniciais, já fui fisgado pela beleza
plástica da abertura. A sensação era de estar num garimpo e encontrar uma pepita. E o que dizer de levantar no meio da sessão para ir ao banheiro e descobrir que na fila de trás está sentado ninguém menos que Erland Josephson, ator sueco famoso por seus filmes com Bergman? E Sônia Braga segurando o gato de Dominique Sanda para que ela fosse ao
banheiro, e Fernanda Montenegro desfilando pelos corredores, e Norma Benguell batendo boca na cerimônia de encerramento, o “Cinema Falado” do Caetano, a vaia beligerante do Arthur Omar ao filme, a estréia de “Ran”, do Kurosawa, três horas de projeção depois da entrega dos prêmios, num total de cinco horas sentado… são muitas as lembranças. E eu nem poderia imaginar que, alguns anos depois, estaria no Festival de Cannes, dividindo plateia com Sharon Stone e Martin Scorsese e Tilda Swinton e tantas outras celebridades saídas das telas para a minha realidade adaptada.
Mas voltando ao tema do artigo – que a realidade é vaca fria e não permite tanto alheamento -, selecionei dez filmes para a minha lista de melhores do ano, sendo quatro brasileiros – um ainda inédito no circuito: “Estranho Caminho”, de Guto Parente, a que assisti no Festival do Rio e que deve estrear em 24. Os outros fizeram cartaz: “Retratos Fantasmas”, de Kléber Mendonça Filho; “Marinheiro das Montanhas”, de Karim Ainouz, e “Pedágio”, de Carolina Markowicz. Talvez os três melhores cineastas brasileiros do momento, no auge de suas carreiras.
Dois blockbusters norte-americanos me chamaram atenção: “Barbie”, de Greta Gerwig, e “Wonka”, de Paul King. “Barbie” é ótimo: divertido, irônico e com uma narrativa repleta de citações e metalinguagem, num casamento perfeito entre cinema comercial e filme cabeça. “Wonka” acaba de estrear e é uma saborosa caixa de bombom, com o
sempre talentoso Timothée Chalamet no papel do personagem de Gene WIlder em “A Fantástica Fábrica de Chocolate” quando jovem. Filme perfeito para se assistir no Natal, a um só tempo, debochado e fofinho. Água-com-açúcar-mas-açúcar-mascavo.
Completando a lista dos favoritos: “O Crime é Meu”, de François Ozon, cinema-teatro com uma trama que beira o abismo do inverossímil sem despencar; “Close”, de Lukas Dhont, drama sensível sobre dois jovens adolescentes envolvidos numa trama de amizade e suicídio; “Orlando”, de Paul B. Preciado, que vi no Festival Varilux e que recria trechos da obra homônima de Virgínia Woolf por uma mirada trans, e “Triângulo da Tristeza”, de Ruben Östlund, um estudo da sociedade em grande angular com propositais exageros de quem vê a vida com lupa.
Ando impaciente: ou os filmes me seduzem a ponto de querer revê-los, ou os rejeito e quero abandoná-los. Tenho saído cada vez mais no meio das sessões. Como tenho o hábito de ir só, fica mais fácil levantar e ir embora, mas não sem algum sentimento de culpa e de fracasso por não conseguir lidar com duas horas de tédio. É que vamos ao cinema para que o tempo passe, e quando o filme é ruim, ele estanca.
Que 2024 nos traga muitos filmes bons e a agridoce sensação de que os anos voam e, com eles, levitam nossas vidas.
Rodrigo Murat é escritor
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