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AluCine – A ARTE PELA DOR

Velas

AluCine – A ARTE PELA DOR

A Arte Pela Dor

– Preciso que você venha aqui quando sair!
– Mas por quê? – respondi (eu estava no trabalho) – Eu pensava hoje em ir pra casa, descansar… Tô meio pra baixo.
– Então, isso vai te deixar pra cima: Você não é atriz? Estão gravando um fime lá no clube e me chamaram pra participar, mas eu preciso de uma parceira para a cena, e por isso te chamo.
– Eita! Como assim?
– Eu sou a pessoa que sabe Wax Play (aquela brincadeira fetichista com velas), e preciso de alguém que seja a pessoa em quem eu vou derramar as velas. Vamos! Vamos! Vamos! Vamos! – ela pediu insistentemente. Ela só havia esquecido de trocar o eufemismo “pessoa” por “vítima” no pedido.

E então eu fui. Como negar um pedido desses, né?

O filme consistia de um cara que não sabia nada sobre os mil e um fetiches do mundo e ia encontrando todos eles num mergulho intenso de cabeça nesse universo. Seriam várias cenas então, gravadas na sequência, todas acontecendo ao mesmo tempo enquanto o cara ia caminhando e observando tudo.

Lá no clube conhecemos uma garota e, papo vai papo vem, ela se prontificou a me fazer companhia recebendo o banho de cera quente. Ela já estava acostumada, dizia.

Tudo preparado e AÇÃO! Na hora que a câmera rolou foi uma gritaria geral: ouvia-se estalos de chicotes, tapas, gemidos, gritos, pessoas penduradas em ganchos soltavam seus “ais”, gente bebendo urina, gente sendo montada como um cavalo e carregando outras pessoas, cuspes e, claro, a vela rolou solta. Eu preferi ficar de costas, é menos dolorido. Já a garota experiente ficou de frente e praticamente pedia por vela quente nos seios…

Foi uma cachoeira. Frau sempre fazia suas próprias velas para sessões como essa. Era farmacêutica e entendia bem de química. Mas havia feito as velas às pressas para uma outra encomenda e para essa gravação. Comprou insumos de um fornecedor diferente do que aquele que estava acostumada. O que sei é que a vela preta, a mais dolorida em geral, estava estupidamente dolorida. Parecia que te rasgavam a carne com uma faca. Soltei um grito, fino e vergonhoso. Uma lágrima saiu. A garota me viu em desespero e me deu a mão, para me dar apoio. E continuamos lá. E nada da câmera chegar perto. E a Frau insistindo naquela vela preta doloridíssima. Tentei falar pra ela mas a gritaria e os barulhos eram ensurdecedores.

Piorava o fato de que ela quando assumia sua persona dominadora usava um véu preto sobre a cabeça. O que fazia ela ter foco mas tirava sua visão periférica, então nem me ver mexendo os lábios ela conseguia. E minhas mãos e cabeça estavam presas na berlinda (aquela placa de madeira usada como instrumento de tortura).

O que deu foi aguentar e agradecer quando por sorte, não sem se demorar fazendo cena (caras e bocas de espanto), o nosso querido protagonista do filme passou pela gente. Depois de passado não havia mais porque continuar. Frau estava se deliciando, mas eu finalmente dei uns pulos e uns coices no ar para chamar a atenção e ela percebeu.

Nos soltaram, eu e a minha parceira vítima. Era vela pra todo lado. Minha saia estava imprestável. Eu me sentia uma múmia, quebrando uma casca que havia se sobreposto à minha pele.

Passamos suavemente as mãos e nos livramos daquilo até onde podíamos. Mais? Só um banho iria revelar, com direito a bastante água em todos os lugares. Eu devia ter cera até dentro do ouvido (isso pra não dizer outros lugares mais óbvios e menos envaidecidos). A pele por baixo estava vermelha e irritada. Frau sacou da Bolsa da Maldade (como ela mesma a denominava) um óleo hidratante e com efeitos calmantes. Foi bom. Parecia carinho de mãe depois do esporro.

Por fim, acabamos tendo amizade com minha companheira de sofrimento. O filme? Chamava-se Prazeres e teve algumas exibições, principalmente dentro do Festival Mix Brasil, ali na Augusta, depois no próprio clube. O fato é que eu nunca consegui assistir. Por falta de tempo mesmo.

Então, um dia pode ser que você tope comigo presa em um instrumento de tortura e levando um banho de parafina líquida em meio a uma gritaria só.

Texto: Lupe Romero é atriz, musicista, performer e escritora.
Lupe Romero

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