O Moedor de Carne
– Tá acontecendo um teste de elenco pra uma produção, bora?
– Bora!
E foi assim que eu respondi a uma ligação de uma amiga por telefone. Viver de arte é sempre ter o “sim” na ponta da língua e levar o “não” no pé da orelha! Estamos dispostos aos maiores sacrifícios, afinal precisamos sobreviver e nos alimentar, mas o crivo, a peneira, está sempre na mão do outro. É mais que um simples funil, é um moedor de carne… e ele é cruel e implacável!
Respondi o meu “sim” como sempre e ainda chamei uma outra amiga, também atriz, para ir junto com a gente. Seguimos para um distante, como sempre também, hotel na zona sul de São Paulo onde ocorreria o teste de elenco.
Havia uma pequena aglomeração do lado de fora. Rostos compenetrados, suor escorrendo, algumas pessoas em grupo, haviam se reconhecido de outro teste ou trabalho em conjunto, alguns outros tantos isolados, taciturnos. Estavam lá desde a atriz hippie-não-estou-nem-aí-com-nada até o ator-sou-muito-bonito-até-para-a-Malhação-mas-resolvi-dar-uma-chance-ao-acaso. Era uma pequena multidão em que se sentia o amargor e o desespero nos mínimos e disfarçados gestos.
Eis que pudemos entrar
– Desculpem o atraso…
E a cada um dos suplicantes aspirantes foi dado um número. Você seria identificado por aquele número. Era um campo de concentração.
Fizemos o tradicional preenchimento de fichas e seguramos plaquinhas com os nossos nomes, idade, altura, tamanho de roupa e sapato, para a câmera. Tudo conduzido por uma equipe de auxiliares mecânicos e informais ao máximo. Não se pode dar muita liberdade para atores, né? Sabe como é.
De repente chegou o dono de tão deprimente espetáculo. Parecia um rei entrando na corte. Se não me engano devo ter visto algumas pessoas se curvarem, não tenho certeza… Havia um brilho e uma pomposidade em sua presença, digna da devoção daqueles que esperavam ser agraciados por sua bênção. Ele tinha total poder de vida e morte sobre todas aquelas pessoas.
Descobri nesse momento que estávamos ali para o teste de elenco de um filme. Que haveria patrocínio e financiamento suficientes. O figurão era um ex ator da Rede Globo já há algum tempo afastado das telas (devia ser muito, porque eu não lembrava da cara do sujeito por mais que me esforçasse) e que tinha tido essa ideia genial. Não, ele não poderia revelar o roteiro, claro! Vai que eu, ou mesmo você, roubássemos essa ideia estupenda que ele havia tido.
Começaram as improvisações e exercícios. As pessoas foram sendo eliminadas. A cada etapa, alguns eram chamados em grupos e nós nunca mais os víamos. Fui ficando, assim como minhas amigas, para o final.
Havia, no entanto, algumas presenças mais do que notáveis: uma loira, daquelas do tipo “padrão mídia de beleza”, alta (muito alta, aliás), cadeiruda, seios grandes e seu marido, um tipo mais franzino, meio careca, de óculos (imaginem um Woody Allen). Faziam até que um casal inusitado e interessante.
Ele o tempo todo com uma câmera na mão gravava absolutamente tudo que a sua mulher fazia. O diretor, o ex global, a elogiava constantemente. Era óbvio o seu interesse pela gigantesca loira escultural. Sua atriz principal já havia sido escolhida e isso era óbvio. O marido, o baixinho, algo fanho até, só para completar o esteriótipo, era só elogios e orgulho.
A outra figura digna de nota era um sujeito que parecia ter saído do bar mais barra pesada de qualquer das quebradas da periferia. Cara grande e quadrada, um cabelo cortado parecido com um índio. A pele morena e marcada. Tinha até aquele vinco na bochecha que ele retrai quando quer fazer cara de contrariado. Tinha até irretocável e onipresente corrente no pescoço com a camisa semiaberta mostrando o tórax exalando testosterona.
Por alguma razão, na organização das duplas para a última cena, a derradeira daquela peneira infernal, o diretor manda-chuva havia colocado o índio de boteco e a modelo de ocasião para contracenar juntos.
Foi o que bastou. A cena era uma discussão entre um casal. E, no bate boca daqui e dali a coisa começou a esquentar e o tal índio partiu pra cima da loiraça, agarrando-a, e começou a jogar as cadeiras do hotel no chão, virou a mesa com todos os papéis dos outros participantes.
Levantou a loira no colo, e via-se que a tensão sexual ali era algo que até a eletricidade do local deve ter soltado suas faíscas. O marido baixinho filmava, algo indiferente, algo orgulhoso, talvez alheio, talvez bem ciente de tudo. Mas nada fazia para intervir. O dono da festa gritava:
– Esses dois são demais! É isso! Estão vendo? É isso!
A cada cadeira que era jogada longe, ele gritava:
– Bravo!
A cada mesa partida:
– Esse cara é demais!
Extasiado, corria em volta do casal, enquanto a mobília do hotel era destruída. A loira, ao mesmo tempo que acuada, também cheia de desejo e luxúria, jogava seu charme por todo o saguão.
Terminou com uma destruição total e os dois deitados no chão aos beijos em uma cena semierótica, com uma platéia, incluindo eu e minhas duas amigas, assistindo a tudo, enquanto o diretor gritava e o marido gravava. Fora de si. Os 4.
Depois do espetáculo voltamos para casa, de trem, e, como devem imaginar, não pegamos os papéis, já que esses já haviam sido preenchidos desde o início. Descobri por acaso que a tal loira era sim um interesse romântico do diretor e que o índio de boteco era na verdade um cara com muita grana, inclusive com vários imóveis e que, para diminuir o custo da produção, as locações para as filmagens seriam cedidas por ele. O filme? Talvez tenha saído, mas não sei, nunca mais vi.
Voltei para casa e me sentei em frente ao telefone, para novamente esperar ele tocar e eu prontamente atender já com o meu “sim” preparado e ensaiado para perecer “disponível” mas não muito desesperado.
A arte, enfim, é um caminho fascinante!
Texto: Lupe Romero é atriz, musicista, performer e escritora.
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