AluCine – O VAN HELSING DA MADRUGADA
O Van Helsing da Madrugada
Pois bem, havia um videocassete em casa, e a partir dele todo um novo mundo se abriu.
A tradicional rotina era o seguinte: antes do aparelho mágico, meu pai saía e voltava com o jornal. Eu rapidamente corria e “roubava” o caderno de cultura. Lia as matérias e tudo o mais, mas a primeira coisa que fazia era justamente olhar a grade de programação da TV para ver os filmes que seriam exibidos naquele dia. Anotava à caneta os que me interessavam e depois colocava o relógio no meu quarto para despertar nas horas marcadas, com o recorte do jornal ao lado para poder assistir a todos quantos pudesse.
No entanto eu era muito criança e meus pais não poderiam ver que eu estava acordada de madrugada. Obviamente que os filmes da madrugada eram os mais interessantes. Os mais violentos, quase que o terreno proibido em que eu queria ousar entrar. Portanto eu acordava, e ia, nas pontas dos pés, em completo silêncio, quase sem respirar, ligava a TV praticamente sem som, e ali assistia a “A Geração de Proteus” (1977), “A Fúria” (1978) e “Scanners” (1981).
Mas, apesar de gostar de todos, um em particular me marcou de forma permanente: “Nosferatu” que aqui ainda tinha o subtítulo “O Vampiro da Noite” (1979). A primeira vez que assisti, aquilo me aterrorizou completamente. A atmosfera era algo totalmente inquietante. Os longos planos e silêncios. A beleza etérea de Isabelle Adjani. Os trejeitos animalescos do surtado Klaus Kinski. E, principalmente, o início. ESSE INÌCIO!
A sequência de créditos que abre o filme me fez encolher, agarrar as pernas e ficar em completo terror. A música macabra de notas graves combinada com uma pulsasão de um coração palpitante faz o fundo para imagens de múmias retorcidas que vão aparecendo na tela em closes captados por uma grande angular, deixando tudo aquilo muito aterrador.
As bocas escancaradas e os olhos profundos, sem vida, nos encaram por longos momentos. Algumas vezes a câmera se detém nas genitálias ressecadas. Noutras, nos sapatos, único resquício de vestimenta que ainda permanece em algumas delas.
Com o tempo esse filme se tornou um desafio. Toda vez que abria o jornal e via que ele iria passar, sentia um calafrio e um desafio também. Era necessário enfrentá-lo! E lá seguia eu, de madrugada, devagar, esgueirando-me na escuridão, para encarar aquelas imagens perturbadoras.
Quando eu conseguia, era uma prova de coragem. Quando desviava o olhar, era uma derrota humilhante. E assim passavam os anos. Eu e Nosferatu nos enfrentando, madrugadas adentro. E a cada confronto eu ia ficando mais forte. Sentia que crescia ao final da experiência, apesar do medo de voltar para o quarto em silêncio e no escuro.
E voltando ao videocassete, além de todas as maravilhas possibilitadas, volto-me para o botão “REC”, que comecei a usar inocentemente para gravar desenhos enquanto estava fora, na escola, e os assistir depois, mas que, com o tempo, serviu para gravar esses filmes mais desafiadores da madrugada, e principalmente, Nosferatu!
Agora eu poderia gravar essa sequência inicial. Voltar e assistir quantas vezes quisesse. E foi o que fiz. Ela ficou gravada em fita, e também no meu coração, porque perdi a conta de quantas vezes assisti a essa introdução, buscando descobrir o segredo do que me abalava tanto.
Com a chegada da internet, ainda sob o impacto da cena, pesquisei e descobri, anos depois, que essas múmias ficam em Guanajuato, no México, e que são pessoas que morreram durante uma epidemia de cólera. Há inclusive um museu para elas, onde a sequência foi filmada.
E pela primeira vez, ao assistir novamente o trecho depois dessa informação, ao invés de terror, senti tristeza.
Texto: Lupe Romero é atriz, musicista, performer e escritora.