*Carta/e-mail a um amigo de Santos que nunca veio ao Rio.
A praia de Copacabana, que você ainda não conhece, pelo menos não ao vivo e em todos os seus tons de cinza, verde e azul, tem uma arquitetura curiosa depois que engenheiros se imiscuíram ao trabalho de séculos da natureza para duplicarem a avenida e o calçadão no início dos anos 1970. Antes eu não sei bem como era – a não ser por fotos e filmes – mas agora ela, em seu delicado formato de meia-lua, apresenta um trecho mínimo de areia na altura do Posto 6 que, aos poucos, vai se alargando na direção da outra ponta – o Leme –, o que permite que quem caminhe junto ao mar, lá pelas tantas, se veja a léguas de distância do caos da cidade.
Muitos já usaram o bairro como mote de inspiração para canções. Caymmi: “Depois de trabalhar toda semana/meu sábado eu vou aproveitar/já fiz o meu programa pra essa noite/e já sei por onde começar/um bom lugar/pra se amar/Copacabana.” Braguinha: “Copacabana, princesinha do mar/pelas manhãs tu és a vida a cantar”. Belchior: “Copacabana, esta semana, o mar sou eu”. Dusek: “Me dá, me dá Copacabana, um shopping center sem ter/nada para se gastar/nada que possa comprar/eu que só quero te amar/ser.” Gil: “Já mandei lhe entregar o mar/que você viu/que você pediu pra eu dar/muita gente quer Copacabana/talvez leve uma semana pra chegar”.
Sim, muita gente quer Copacabana e é difícil tê-la só pra si. No auge da pandemia, em alguns raros momentos foi possível vê-la nua e vazia como nos primórdios do século passado, quando a urbe começava a se voltar para a orla da Zona Sul. O Copacabana Palace, um dos primeiros a chegar, ano que vem completa 100 anos.
Quando eu era criança, eu não ia à praia em Copacabana. Ipanema já tinha se imposto como o lugar da moda com o Píer servindo de ágora para surfistas, artistas, hippies, antenados e todo tipo de cuca legal. “Cuca Legal” era uma expressão da época que chegou a batizar novela e a ser imortalizada na letra da canção de Zé Rodrix que a Elis gravou – “Casa no Campo”. “Eu quero a esperança de óculos/e um filho de cuca legal”.
O Píer existiu temporariamente durante a construção do emissário submarino. Era uma espécie de ponte sobre o mar que levava a tubulação até o ponto em que os dejetos de esgoto seriam descartados. Daí formaram-se dunas, apelidas depois de Dunas do Barato, onde era possível encontrar Gal e os baianos e tentar se mudar o mundo com paz, amor e prosa. Hoje, quando a maré está baixa, é possível ver resquícios das vigas sob a areia.
Essa ideia de uma cidade sob águas marinhas aparece em um dos capítulos do livro “Os Anéis de Saturno” de W. G. Sebald, autor alemão que recém descobri e de quem copio o excerto na tradução de José Marcos Macedo:
“Dunwich: essa região é tão vazia e deserta que, se alguém fosse ali abandonado, mal saberia dizer se estava na costa do mar do Norte ou talvez às margens do mar Cáspio ou no golfo de Lian-tung. Ela é hoje o que restou de uma cidade que foi um dos portos mais importantes da Europa na Idade Média. Um dia houve ali mais de cinquenta igrejas, monastérios e hospitais, estaleiros, praças fortes, uma frota mercante e pesqueira com oitenta navios e dezenas de moinhos de vento. Tudo isso foi a pique e agora se encontra debaixo do mar, sob areia aluvial e cascalho, espalhado por uma área de seis ou sete quilômetros quadrados. Na noite de ano-novo de 1285 a 1286 uma inundação devastou a cidade baixa e a região do porto de forma tão terrível que, durante meses, ninguém foi capaz de dizer onde terminava o mar e começava a terra. Em toda parte, muros caídos, entulhos, escombros, vigas partidas, cascos de navio destroçados, massas encharcadas de lodo, cascalho, areia e água. Quando se olha o mar do topo da colina, na direção de onde deve ter sido um dia a cidade, sente-se o poderoso sorvo do vazio. Talvez seja por isso que Dunwich virou uma espécie de centro de peregrinação para escritores melancólicos na era vitoriana.”
Aí me vem a canção do Chico: “E quem sabe então o Rio será alguma cidade submersa” (“Futuros Amantes”). E ao invés de “Não se afobe não, que nada é pra já”, se afobe aí, amigão, venha ao Rio antes que seja tarde e a cidade vire mar.
Termino te escrever, abro o jornal e deparo com a seguinte resenha literária:
“Entre o céu e o sal”. Autor: Everton Behenck. Editora: Nacional. Páginas: 224. Preço: R$ 64,90. Sinopse: “A Zona Sul do Rio foi totalmente tomada pela água do mar. A elite expulsou os moradores dos morros para dar lugar aos novos bairros. Aos pobres, a única alternativa foi invadir os prédios alagados e construir ali novas favelas. É neste cenário que se desenrola esta distopia que mescla elementos reais com ficção.”
Mera coincidência ou primeira trombeta do apocalipse? Por via das dúvidas, venha logo.
Rodrigo Murat é escritor
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