“Nesta semana (emoldurada por esta década nefasta, pendurada na parede deste ano desesperador…” / Bela maneira de se começar uma crônica, Antonio Prata. / O professor do curso de renovação lexical na literatura e na mídia que estou fazendo explica que o termo “crônica” vem do grego “chronos”, que quer dizer “tempo dos homens”, ou seja, o gênero “crônica” pressupõe uma “compilação de dados apresentados segundo a ordem de sucessão no tempo”. A fotografia de um instante. Fotografemos, pois. / Antigamente, quando se ia bater uma chapa, o fotógrafo dizia: “Olha o passarinho”. Mais tarde, passou-se a dizer: “Sorria, diga cheese”. Agora, nas selfies, ninguém diz mais nada, porque a maioria faz biquinho, e não possível falar e fazer biquinho ao mesmo tempo / Palavras que talvez devêssemos deixar de lado por excesso de uso: feedback, focado, distopia. Existem inúmeras outras, mas agora me escapam. / A crônica do Prata, que começou tão bem, engasga lá pelas tantas na vontade de ser fofa. Escreve ele, após narrar uma anedota: “A piada fica mais engraçada substituindo “rabo” por seu sinônimo de duas letras, mas em nome do decoro, vamos na versão família.” Se essa crônica, se essa crônica fosse minha, eu mandava, eu mandava deletar esse aparte, a meu ver, desnecessário. / Semana passada, revirando gavetas, deparei com pilhas de contas e fotos. Por que guardamos tantos boletos e por tanto tempo? Será uma maneira de avançar no tempo agarrado a migalhas do passado? Mas as fotos não mentem, e nelas eu estou invariavelmente de cabelo preto e rosto intacto. Incrível como aos 35 eu parecia 18. E agora, que idade eu imprimo? Na rua, às vezes, me chamam de “Filho ou Filhão”, o que ativa a minha Síndrome de Peter Pan; outro dia, porém, um setentão perguntou se eu era sessentão, o que ativou à minha Síndrome de Caim; e na sexta, numa pizzaria em SP, o jovem atendente de 19 me veio com a seguinte tirada: “O meu pai, de 45, está muito pior que o Senhor!”, o que ativou meu Complexo de Cinderela. Preciso remover síndromes e complexos antes que a idade chegue de vez e me pegue de calça curta. / Revi “A Regra do Jogo” do Jean Renoir. Tinha visto na época em que fazia a faculdade de Cinema, e só me lembrava da movimentação frenética dos atores e do piso xadrez.
E não é que ao ler uma entrevista com o crítico cinematográfico Christopher Faulkner sobre o filme deparo com: “Sempre me lembro do piso xadrez tão importante para o efeito em perspectiva que você tem dos interiores. É um padrão familiar da pintura holandesa.” Será que todo mundo que vê “A Regra do Jogo” registra na mente o piso do cenário? / E a facada no Salman Rushdie? Que loucura! Quando o aiatolá Khomeini, em fevereiro de 1989, decretou a fatwa contra o escritor por conta de seus “Versos Satânicos”, eu era repórter estagiário do “Jornal do Brasil” e o editor me mandou pegar o telefone e ir atrás da opinião de famosos. Para minha sorte, encontrei Renato Russo em casa, e ele, sempre disposto a discorrer sobre qualquer assunto, nesse dia não foi diferente. / Os desdobramentos da fatwa são impressionantes. Em 1991, o professor de cultura islâmica que traduziu o livro para o japonês foi esfaqueado. Meses antes, o mesmo já havia acontecido com o tradutor italiano. Em 1993, o editor norueguês foi baleado. E o escritor turco que preparava a tradução para a língua de seu país foi cercado por uma multidão de fundamentalistas islâmicos no Hotel Madimak. O hotel foi incendiado e 37 pessoas morreram. É ou não é um roteiro para Quentin Tarantino ou Sam Peckinpah? / “Esta noite, sonhei com um veleiro”. A crônica do Prata volta a crescer no fim, resumindo em uma frase o conteúdo anterior. Viva a crônica! Viva o tempo! Viva a palavra do Prata e o silêncio de Ouro!
Rodrigo Murat é escritor
Imagem de Roger Casco Herrera por Pixabay
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