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DO FIM AO TUDO

​Um dos últimos espetáculos que vi antes do fechamento dos teatros em 2020 por conta da pandemia de Covid-19 foi “Fim”, com direção de Felipe Hirsch, texto do dramaturgo argentino Rafael Spregelburd, e Renato Borghi, Magali Biff, Rodrigo Bolzan, Danilo Grangheia, Amanda Lyra, Vinícius Meloni, Blackyva, Sarah Rogieri, Maria Beraldo e Mariá Portugal no elenco. A peça, dividida em quatro partes – “O fim das fronteiras”, “O fim da arte”, “O fim da nobreza” e “O fim da história” – estabelece uma discussão acerca da vida em sociedade pelo prisma de quem está sobre um palco atuando, ou seja, todos nós – atores e não-atores.

Três anos depois, com a vida devolvida a seu estado “normal”, um dos primeiros espetáculos que vejo leva a assinatura do mesmo Spregelburd – “Tudo” – com direção de Guilherme Weber e Vladimir Brichta, Julia Lemmertz, Dani Barros, Márcio Vito e Claudio Mendes no elenco. A peça, dividida em três partes – “Por que todo estado vira burocracia?”, “Porque toda arte vira negócio?” e “Por que toda religião vira superstição?”, estabelece uma discussão acerca da vida em sociedade pelo prisma de quem está sobre um palco atuando, ou seja, todos nós – atores e não-atores.

Não há saída: as boas peças forçosamente se debruçam sobre o tema da representação. Representação que leva à manipulação. Falar é manipular. Toda palavra dita gera uma expectativa de resposta. Um mero “bom dia” não sai inocente da boca sem exigir de volta o “bom dia” do interlocutor. O diálogo de Spregelburd, nesse sentido, é metalinguístico de ponta a ponta. Nada do que é dito se basta, ampliando o entendimento para além do primeiro sentido imediato. Não é à toa que lá pelas tantas, o personagem de Vladimir na cena da ceia de Natal onde todos os clichês de uma comemoração em família são testados, afirma que toda palavra carrega o seu significado e o seu contrário.

“Tudo” é um título que não diz nada, e “Nada” talvez pudesse ser o outro nome da peça. Na primeira cena, há mesmo um longo diálogo que até cria um crescendo dramático do tipo “onde é que isso vai dar?”, mas que na verdade só encobre a falta de assunto que une separando um grupo de funcionários presos no local de trabalho por sucessivas jornadas diárias. Por não terem o que se dizer, eles apelam para qualquer coisa como, por exemplo, o preço real de um paletó usado.

As duas sessões de sábado estavam lotadas. Muitos atraídos pelas figuras midiáticas de Vladimir e Julia. A maioria, se apostou num espetáculo comercial de linguagem naturalista, saiu decepcionada. Foram ver atores da TV ao vivo e se depararam com um jogo teatral retórico em que a palavra está a serviço de uma ideia, não de uma história.

Lembro quando assisti a “Dias Felizes”, de Samuel Beckett, com Fernanda Montenegro e Fernando Torres no elenco. A plateia repleta de senhorinhas que saíram de casa para ver os Fernandos e que foram obrigadas a conviver por duas horas com um texto espinhoso. Na época, não havia celulares, então as senhorinhas tinham de recorrer a bocejos, cochichos com a colega do lado e espiadelas no relógio de pulso para ver se faziam a hora andar. Ontem, não foi diferente. Ao meu lado, um cidadão dormiu e outro passou a peça no Whatsapp. Cada um foge para onde pode. Eu fui pra dentro da peça e lá me escondi, protegido dos perigos da vida real.

É que, para mim, o mais intrigante da noite veio antes da sessão. O taxista que me levou ao teatro e que mais parecia um personagem saído de alguma ficção absurda em que o que é dito não corresponde ao esperado. Da hora em que entrei à hora em que desci do carro, o sujeito reclamou de tudo, inclusive de mim. Optei por me manter à margem da “cena” para não ser obrigado a ter que contracenar no mesmo grau de irritabilidade. No saguão do teatro, à espera do início da sessão, entendi que para mim a peça começou quando eu saí de casa. O homem, de fato, me pregou uma “peça”.
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Spoiler um: O taxista me deixou a duas quadras do local de destino. Sem o GPS – que ele não conseguiu acessar – nos perdemos. Ele, ainda mais irritado, me disse quando eu apontei o teatro à direita: “Bom, então você desce aí, que eu estou indo pra lá.” Paguei. Tentei abrir a porta: travada. “Desce pela outra. Essa um gringo maldito me quebrou.” Desci desejando-lhe uma ótima noite de sábado, mas o que eu estava dizendo mesmo no subtexto era que ele procurasse uma sessão de descarrego.
Spoiler dois: “Tudo” termina com a personagem de Dani Barros, uma esposa apavorada com o seu filho recém-nascido que está doente perguntando para seu marido: “Como é que faz pra viver sem medo?”

Rodrigo Murat é escritor

Imagem de Colleen ODell por Pixabay

Agência Difusão

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