DOIS PAULOS DE DOIS PPs
Dois Paulos de dois PPs
Em ocasião de um convite da professora Clêmie Blaud para conversar sobre o filme “Capitu”, cujo roteiro foi elaborado por Paulo Emílio Sales Gomes e Lygia Fagundes Telles, resolvi publicar este depoimento de Paulo Cezar Saraceni sobre o amigo reproduzido da forma como foi escrito.
Depoimento – Paulo Cezar Saraceni sobre Paulo Emílio. Rio, 03/09/2001
“Paulo Emílio Sales Gomes. Quem conheceu bem Paulo Emílio além de ser um privilegiado, pois foi iluminado por uma inteligência fatal de um grande intelectual, que por ter sacado que o cinema além de permitir que sua pessoa se revelasse completamente como um visionário que viu a importância do cinema antes dos intelectuais e artistas da semana de arte moderna de 22, seguindo assim o movimento de Octávio de Faria e Plínio Sussekind da Rocha no Rio de Janeiro com o Chaplin Club que primeiro anunciaram no Brasil o aparecimento de outra arte, a sétima arte, Paulo Emílio em São Paulo se apaixonara profundamente pelo cinema e como cineasta completo usando a sua extraordinária capacidade para o trabalho feito com prazer e arte, Paulo Emílio era um grande ator e suas conferências eram como óperas de Mozart em que o humor sutil de sua inteligência era arrebatador. Trotskista aceitando viver num país surrealista como o Brasil, usava sua coragem e seu espírito para percorrer vários caminhos que não impediam que acreditasse no que ele via nas imagens em movimento que sustentavam sua formação de mestre maior que polivalente agüentou as prisões do Estado Novo, que em Paris iria asilar diante de um outro ser excepcional, cujas veias podíamos ver o movimento de seu sangue em fotogramas que por seus valores espirituais e fundamentais para a cultura dos séculos que viriam marcados sem volta pela esta sétima arte conduzida pela emoção e pela paixão da vida. Henry Langlois. Se em Paulo em São Paulo foi convencer os melhores poetas e artistas da grandeza do cinema em Paris ao lado de Henry Langlois, aprendera ver e rever com muito amor e sede de conhecimento a trajetória desta arte onde o inconsciente era visível e sentido. Para os franceses, para o Brasil e para o mundo, Paulo Emílio revelava para a história dessa recente arte, a presença de um grande cineasta e poeta da altura de Rimbaud: Jean Vigo, morto como Noel Rosa, jovem demais e que “A Propos de Nice*, seu primeiro filme, “Zero de Conduite* e “Atalante” colocaram o cinema numa febre amorosa de sexo e prazer que valiam pela luta de Freud e seus discípulos que Vigo os colocava no bolso com seu olhar que sentia ver, vendo.
Melhor ainda, dentro daquela nossa falha na retina que permitiam nossos olhos verem as emoções de dentro para fora e vice versa, de dentro para dentro e fez mais, descobriu o pai desse poeta genial, Almeyda, um anarquista capaz de anunciar novamente a utopia da revolução que estávamos vivendo como um sonho nascido do real, percebido de um artista para os olhos e os corações de cada indivíduo irmanados nos sentimentos plurais que o cinema passa para cada espectador iluminado naquela revelação. Que milagre é esse? Deve ter se perguntado uma linguagem poética dos flashbacks que permite que haja um sem número de ressurreições que estão sempre presentes naquele instante de ver o filmado. Paulo Emílio vira mestre professor que transforma suas aulas em representações oníricas com gestos e uso da voz e das inflexões que se somam a intuições brilhantes como um céu estrelado. Paulo Emílio vira um pesquisador que acredita na imaginação não só do conferencista, mas dos que são capazes de se apaixonarem pelo divino da vida e do conhecimento.
Ao voltar ao Brasil, Paulo Emílio tem o sonho de preservação e da conservação dessas obras primas cinematográficas, vai ao encontro de um amigo escolhido pelos Deuses para ser companheiro desta viagem maravilhosa que foi e que é a fundação da Cinemateca Brasileira de São Paulo, como terá sido essa amizade maravilhosa de Paulo Emílio com a genialidade do nosso presidente Almeida Salles. Que mistério terá sido este de juntar num mesmo movimento num mesmo sonho de uma cidade que crescia e não palavra, dois homens dessa grandeza.
A primeira vez que vi Paulo Emílio, foi em 1954, no Festival Internacional de Cinema de São Paulo. Eu tinha largado o futebol do Fluminense onde tinha sido pentacampeão pelo juvenil do tricolor carioca e inteiramente seduzido pelo cinema. Entusiasmado com as opiniões de Octávio de Faria, que entendia de cinema, parti para São Paulo para saber o que era a arte cinematográfica pessoalmente. O dia que eu me lembro melhor foi o dia onde seria exibido “Greed” (Ouro e Maldição) de Eric Von Stroheim, que eu conhecia apenas como um grande ator nos filmes de Hollywood.
Eu vi e ouvi as apresentações líricas de Francisco Luiz de Almeida Salles e as operísticas comoventes de Paulo Emílio Sales Gomes. Que lição maior eu poderia ter? E ainda ver e ouvir Eric Von Stroheim falar do seu filme, “Greed”. Não, não era Ouro e Maldição, era jóia rara, biscoito fino e bendição. Que noite! Não me lembro de outra que tenha me marcado tanto. Paulo Emílio e Almeida Salles, nosso presidente eterno, com a colaboração de grande Rudá de Andrade que, por ironia do destino, ao contrário de seu pai Oswald, logo percebeu que o cinema que Paulo Emílio Sales Gomes e o presidente falavam era a sua vida para sempre. Mais tarde, em 1961, na Bienal de São Paulo, os três mestres iriam lançar o Cinema Novo para o mundo. Em Florianópolis, durante o festival, o profeta Paulo Emílio iria perceber no rosto e no olhar fulgurante da atriz Irma Álvarez, a imagem do Cinema Novo nos longas metragens, já que ele tinha visto nos curtas, as palmas que se misturavam no público atento ao filme que terminava de ser exibido: “Arraial do Cabo”, com o filme que começava, “Couro do Gato” de Joaquim Pedro de Andrade. Eram os sinais que o profeta e mestre sacava.
Mais tarde, já em 1962, Paulo Emílio iria confirmar a profecia. Vendo a realização de sua profecia, vendo Irma Alvarez, aquela Capitu do subúrbio, uma Bovary Selvagem, caminhando com o machado Assassino em “Porto das Caixas”, que ele tinha acabado de ver durante a mixagem do filme. Durante o Festival de Salvador – Bahia, Paulo Emílio reviu o filme e escreveu a mais bela crítica que Porto das Caixas recebeu. A minha alma chegou a dançar um samba rasgado ao lê-la. Crítica maravilhosa, pura. Irma seria a maior personagem feminina do cinema brasileiro, Paulo Emílio falou e disse. Em 1965, no tumultuado festival de Brasília, um ano depois do golpe militar, Paulo Emílio não só conseguiu que o “Desafio”, preso na censura, fosse exibido, mas apresentou o filme de tal maneira, que conseguiu uma proeza inimaginável. Que os alunos e os professores expulsos da faculdade de Brasília assistissem o “Desafio” sem se manifestar para não atrapalhar as gestões dos produtores na censura militar. A sessão tinha mais de 3000 espectadores, público nunca mais superado nos outros festivais até hoje. Somente os militares provocavam e os estudantes em silêncio mais do que constrangedor. Na sua crítica, no jornal “O Estado de São Paulo”, Paulo Emílio, que foi o primeiro a ouvir minha intenção de filmar o “Desafio” e duvidou da possibilidade de se fazer um filme onde o amor e a revolução estivessem em campos opostos, adorou o filme e no artigo disse que eu era o mais pessoal e intransigente cineasta que o cinema brasileiro conheceu. Em 1967, eu não pensei duas vezes quando me veio a ideia de adaptar Dom Casmurro de Machado de Assis para o cinema. Filme que eu chamei de “Capitu” por causa da crítica de Paulo Emílio sobre Irma Álvarez em “Porto das Caixas”. Iria trabalhar no roteiro com dois geniais escritores e intelectuais que conheciam Machado de Assis mais do que qualquer um. Paulo Emílio e sua mulher, a grande escritora Lygia Fagundes Telles.
A realização daquele roteiro me deu grande prazer e me ensinou tanto. Paulo Emílio tinha deixado de fumar, mas tomava café o tempo todo, eu nunca tomei tanto café e evidentemente nunca fumei tanto. Ao receber o prêmio de melhor roteiro do Festival de Brasília, Paulo Emílio me chamou no canto e ordenou: o prêmio vai para Lygia. Ninguém merece mais, respondi. Saímos abraçados. Grande Paulo Emílio. Perfeito no amor também. Batalhou junto com o presidente e com o senador José Sarney para que “A Casa Assassinada”, meu filme de 1971, ganhasse seis prêmios em Brasília. O filme estava preso na censura do general Médici que odiava o filme. Não foi fácil, mas eles conseguiram e ganhar do filme genial do Nelson Pereira do Santos, “Como era Gostoso o meu Francês”, deve ter deixado Lúcio Cardoso muito feliz, no céu que estivesse.
Mas, o melhor de Paulo Emílio era a sua amizade e os conselhos que dava. Eu não deixava nunca de procurá-lo quando precisava. Foi o que fiz em 1973, na barra pesada do Governo de Médici, quando fui preso e apanhei muito por ter feito “O Desafio” e ser amigo da Vera Barreto Leite e Paulo Vilaçaa. Saí muito deprimido e viajei imediatamente para casa de Paulo Emílio e Lygia em São Paulo. Lá, contei tudo pra ele e seu humor maravilhoso me salvou. Naquela noite, passava na TV Cultura o Desafio. Fiquei louco e na sessão do filme que assisti sozinho com ele, durante a sessão Paulo Emílio se levantou e fechou as janelas me dizendo, estou com medo dos vizinhos estarem ouvindo, eu ri tanto que saí da depressão.
Quase no final da sua vida, no momento que seu livro sobre Jean Vigo tinha sido reeditado em Paris e fazia sucesso, foi convidado para voltar a escrever críticas de cinema no Jornal da Tarde e aceitou com a condição de só escrever sobre cinema brasileiro dizendo que o pior filme brasileiro me interessa mais do que o melhor filme estrangeiro. Como um milagre, Paulo Emílio ficou três meses escrevendo geniais críticas e comentários sábios sobre o cinema brasileiro.
A perda de Paulo Emílio, que na sua morte, Glauber Rocha viu sua alma subir ao céu, diante de mim e do presidente, foi irreparável. A crítica brasileira ficou inteiramente idiota pelo menos por 15 anos. Agora, principalmente em São Paulo, ele, graças a Inácio Araújo da Folha de São Paulo, a crítica volta a ter bons ares, a inteligência voltou.
Em 1980, passei um longo período em São Paulo, acompanhando Anna Maria Nascimento e Silva, que fazia uma novela na TV Bandeirantes. Passei o tempo todo no barzinho dos amigos do Museu de Arte Moderna, como nosso presidente. Foi um tempo rico de poesia, mais de muitas saudades de Paulo Emílio. Resolvi filmar Duas vezes com Helena, conto de Paulo Emílio do livro 3 PPPS, filme que eu chamei de “Ao Sul do Meu Corpo”. Armei um quarteto maravilhoso de atores Anna Maria Nascimento Silva, Paulo Cesar Pereio, Nuno Leal Maia e Gofredo da Silva Teles e com uma canja de nosso presidente Francisco de Almeida Salles no papel de Eric Von Stroheim como condutor dos destinos.
O filme matou minhas saudades do grande mestre e me deu enorme prazer. Infelizmente, a burrice do Ministro de plantão da ditadura prendeu o filme por dois anos, mas pude mostrar meu filme em 10 festivais internacionais, alguns com prêmios e em 1999 foi agraciado no Festival de Cannes que o considerou entre os 50 maiores filmes de amor da história do cinema de todos os tempos.
Nosso presidente disse que eu era um homem que pensa e vive cinema, mas os méritos maiores são de Paulo Emílio Sales Gomes e da minha saudade desse amante da vida e do cinema.
Paulo Cezar Saraceni.
Via Renata Saraceni
Produtora, Cineasta e sobrinha do diretor.
Imagem: Paulo Emílio Sales Gomes(Acervo da Cinemateca)