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E POR OLHAR TUDO, NADA VIA

Num exercício de linguagem, tranço meu estilo ao de Margo Glantz, que no livro “E por olhar tudo, nada via” alinhava comentários a partir de notícias antigas e recentes em parágrafo único de duzentas páginas. O que está em itálico é dela, na tradução de Paloma Vidal, em livro recém-lançado pela editora Relicário.

​Ao ler as notícias, como decidir o que é mais importante? Que no dia 31 de janeiro de 2018 aparecesse no céu uma enorme Lua azul, ensanguentada; que o massacre de formigas acontecido ontem sobre meu fogão evoque, ainda que remotamente, os genocídios imputados a grupos populacionais, o que também remete ao verso no interior do Rei Lear em que Shakespeare diz que somos para os deuses como moscas nas mãos de garotos arteiros, nos esmagam por diversão; que três japoneses revelem que preferem ter como companheiras de vida suas bonecas robôs, feitas de silicone e providas de vaginas intercambiáveis; que para se defender o atual presidente brasileiro seja preciso que o indivíduo recorra a um acervo pessoal de opiniões, que pouco ou nada tem a ver com os fatos, mas, afinal de contas, o que são os fatos; que estar em situação de rua é uma hipocrisia da linguagem politicamente correta; que para se fazer sucesso como escritor seja necessário convencer os outros de que se é inteligente, o que é um pouco maçante, além de emburrecedor; que o cardiologista argentino René Favaloro tenha inventado o by-pass por volta de 1950 e que no ano 2000 se suicidasse com um tiro no coração; que o tempo mostre-se aparentemente linear, e que isso inviabilize a desejável hipótese de se viver os vinte e os cinquenta anos concomitantemente; que ao ser detido nos Estados Unidos um homem de oitenta e três anos e uma mulher de oitenta que transportavam noventa quilos de maconha alegassem que se tratava somente de um presente de Natal; que os anos passem depressa e mesmo assim não nos habituemos e continuemos a comentar com espanto como esse ano voou, especialmente quando novembro faz a curva pra dezembro; que no Marrocos quinze jovens tenham contraído raiva por fazer sexo com uma burra; que o “sectário” de “cultura” tenha ido à Bienal de Veneza sem saber quem é Lina Bo Bardi e que vá trabalhar armado para assediar os esquerdopatas; que Lord Byron contasse que várias vezes esteve a ponto de estourar os miolos, mas que não o fez porque teria dado um grande prazer à sua sogra; que atores posem para fotos fazendo cara de “por cima da carne seca” metidos num modelito Armani para expressar o seu self humilde-blasé; que no Colorado uma gazela tenha entrado numa loja de doces, que o proprietário decidisse lhe oferecer chocolates e biscoitos e que meia hora depois o animal voltasse com toda sua família; que a capa do novo álbum de Maria Bethânia tenha suscitado polêmica num tempo em que o streaming jogou pra escanteio a indústria fonográfica e, de quebra, o design gráfico que acompanhava as capas dos discos; que em 1455 Johannes Gutenberg, o inventor da imprensa, tenha escrito a palavra coração 973 vezes na primeira Bíblia que imprimiu; que disco agora se chame álbum; que o governo do Quênia culpe o turismo gay de um encontro sexual entre leões machos; que seja mais do que sabido que todas as ações humanas estão interligadas, e que um dólar a mais cobrado de propina sobre uma dose de vacina é um café com pão a menos debaixo de uma marquise da Paulista; que se pode ler em O silêncio do corpo do escritor italiano Guido Ceronetti que no ponto culminante de seus arrebatamentos oratórios Hitler ejaculava: era o momento no qual a Multidão estava mais estreitamente subjugada a ele: Cumpria-se assim uma cópula monstruosa, um incesto não previsto pelos códigos sagrados. A multidão fecundada, grávida de demônios que demoram pouco tempo em sair de sua barriga; que joanetes sejam sinal de longevidade e que haja místicos capazes de ler a sorte neles; que um dos objetivos principais do Facebook seja comunicar e difundir o estado anímico dos que facebookeiam; que pior do que o fim do mundo por dilúvio ou asteroide seria um Acordo Internacional Niilista em que todos desistissem de viver os seus papeis sociais, o que levaria a consequências catastróficas; que Kafka escrevesse em seus diários: Todos os dias tenho que escrever pelo menos uma frase contra mim…

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Margo Glantz nasceu na Cidade do México em 1930 e continua cá entre nós.

Rodrigo Murat é escritor

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Agência Difusão

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