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ELETRA COM CRETA

Electra com Creta

ELETRA COM CRETA

D – Ainda é insuportável o que acontece lá fora?
E – Me sinto obrigado a dizer que sim, mesmo que não seja verdade.
D – O que direi quando sentires a vontade de dizer não?
E – Continuarei sempre a dizer que sim, prometo, pelo mal que nos une. Mesmo que não saibas, estás com o olhar de pânico.
D – Então, diante de tamanha injustiça, esse ponto de vista se torna ainda mais agudo. Sinto que não possuo mais nenhum ângulo reto.
E – Bobagem. De onde eu te vejo, você senta na casa dos cinquenta. Ainda há muito pela frente. Infelizmente, mesmo que pudéssemos entregar os pontos, não haveria a quem entregá-los.
​Esse diálogo enigmático, que parece saído da caixa-preta de Samuel Beckett, é da peça ELETRA COM CRETA, de Gerald Thomas, encenada no Rio de Janeiro em 1986 no Museu de Arte Moderna. No elenco, Luiz Damasceno, Marcos Barreto e um quarteto de atrizes de arrepiar: Beth Goulart, Bete Coelho, Vera Holtz e Maria Alice Vergueiro.
​Folheando o programa do espetáculo, reencontro depoimentos dos envolvidos sobre o processo:
Gerald: A peça é uma reavaliação da tragédia ocidental, dos mitos que a pontuam, além de ser um desabafo punk, sujo, sediando o teatro no seu equidistante análogo: o cinema.
Bete: O Gerald deixa muito claro que é um manipulador e cada um sente que está sendo manipulado.
Vera: Eu sinto que ele quer uma pulsão, a tua energia, a tua paixão. Eu me sinto uma cor na mão dele. Eu tenho que ser intensamente azul ou intensamente vermelha.

Maria Alice: Ele lida com os mitos. O teatro dele está retratando, neste fim de milênio, toda essa torre de babel. A peça é uma destruição destes mitos na medida em que todos nós aceitamos que todos eles estão fraccionados dentro da gente.
Beth: Particularmente pra mim esse trabalho é como romper a casca do ovo, é um rompimento com meu processo de carreira de até pouco tempo. Havia uma imagem pré-estabelecida a meu respeito e esse trabalho é uma maneira de eu romper com essa imagem, romper com esse preconceito.
Daniela: A tela de filó é para brincar com o tempo. Sacanear esse adorável ditador que sempre se impõe sobre os conceitos diretoriais: o tempo da entrada e saída dos atores e objetos no palco. E se os atores desaparecessem de repente e aparecessem em outro lugar?
​Separados do público pela tela mencionada pela cenógrafa Daniela Thomas, os atores apareciam e desapareciam sob efeitos de luz acende/apaga, que iam “editando” a peça como se a arena fosse uma mesa de corte. Não havia propriamente uma história, e sim fragmentos, restos, citações, plágios, recortes; o elenco coreografado na postura que Gerald chamava de “Fim de Milênio”: corpo curvado (alta depressão) e cabeça pra frente (leve intenção de otimismo).
​Muita gente não entendia bulhufas e saía do teatro indignado, querendo o dinheiro de volta ou sugerindo a deportação do diretor que, brasileiro radicado nos Estados Unidos – e ainda por cima com esse nome-grife estrangeirado – era visto por parte da classe teatral como um intruso que, mal chegado à terrinha, já queria sentar-se no banco da frente. Quem era Gerald na fila do pão? O pão. Eu só viria a torcer o nariz para ele duas décadas depois – mas isso é uma outra crônica.
​ELETRA COM… – ainda não tinham inventado o ponto com – foi a segunda peça de GT a que assisti. A primeira foi 4 VEZES BECKETT, no teatro dos Quatro, em 1985, com Sérgio Britto, Rubens Correia, Ítalo Rossi e Richard Righetti. QUARTETT, de Heiner Müller, com Tônia Carrero e Sérgio Britto, viria depois. Três montagens marcantes e ambiciosas, fortíssimas candidatas a figurar numa lista de melhores peças dos anos 80.
​Na primeira vez que fui ao MAM ver ELETRA COM… com um amigo – voltaria mais duas vezes rebocando outros para assisti-los assistindo– tive um acesso de riso na cena em que Maria Alice era estrangulada enquanto saía disparando frases desconexas ora gritadas, ora golfadas, num efeito cacarejante. Era um riso nervoso, reprimido, por acreditar que diante do verniz intelectual da peça, não cabia humor. O público douto, sorumbático, analisando cada signo como pensadores de Rodin, e eu e meu amigo às gargalhadas como duas crianças numa missa.
Maria Alice: Eu também vim pra tragédia, seríssima. De repente é uma sátira da tragédia, está mais para Aristófanes do que para Eurípides.
​Maria Genial Alice Inesquecível Vergueiro que eu voltaria a ter o prazer de ver em “Kathasthophé”, “O Doente Imaginário”, “Sonho de uma Noite de Verão”, “A Comédia dos Erros”, “No Alvo” e “As Três Velhas”.
Cada atriz dessas que se vai é uma dicção que se perde. A palavra teatral nas embocaduras de uma Maria Alice, de uma Miriam Muniz, de uma Cleyde Yáconis é elevada a seu expoente máximo, verticalizando-se da página com todas as possibilidades exploradas.
ELETRA COM CRETA, afastada a cada dia no tempo, é agora uma lembrança abstrata, que ajuda a atravessar esse longo período de jejum teatral como uma promessa retroativa de felicidade.
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Este texto é a primeira parte de uma trilogia que pretende um sobrevoo sobre o teatro de Gerald Thomas dos anos 80.

Rodrigo Murat é escritor
rodrigo murat

Imagem de <a href=”https://pixabay.com/pt/users/geralt-9301/?utm_source=link-attribution&amp;utm_medium=referral&amp;utm_campaign=image&amp;utm_content=1308794″>Gerd Altmann</a> por <a href=”https://pixabay.com/pt/?utm_source=link-attribution&amp;utm_medium=referral&amp;utm_campaign=image&amp;utm_content=1308794″>Pixabay</a>

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