ESCUTE AS MULHERES
O que você estava fazendo no dia 25 de agosto de 2015? Comprando uma blusa no shopping? Veraneando em Bertioga? Operando amígdala? Pois a antropóloga Nastassja Martin estava sendo atacada por um urso numa tundra russa na distante e inóspita região de Kamchatka.
Nastassja esteve recentemente na Feira Literária de Paraty falando acerca do tema que virou livro. Lendo seu pequeno e profundo relato de 100 páginas, fui instantaneamente atirado de volta à Clarice Lispector de “A Paixão Segundo G.H.”. Ambos os textos falam do encontro de mulheres com bichos e das revelações íntimas que podem advir daí. Não sei a comparação é pertinente. Não sei mesmo se alguma comparação o é, mas talvez seja o que o nosso cérebro faça para nos devolver algum sentido num mundo tão cifrado.
O livro de Nastassja se chama “Escute as Feras”. No original: “Croire Aux Fauves”. Nele, ela, entre outras coisas, faz o relato dos procedimentos cirúrgicos pelos quais teve de se submeter após o ataque brutal:
“No beijo do urso em meu rosto, nos seus dentes que se fecham em minha face, no meu maxilar que estala, no meu crânio que estala, na escuridão dentro da sua boca, no seu calor úmido e no seu hálito carregado. (…) Como o urso foi embora com um pedaço do meu maxilar, que ele guardou no dele, e como também quebrou meu zigomático direito, será necessário operar novamente, em breve. Quando cheguei, eles fixaram uma placa no osso para segurar o ramo mandibular inferior direito; é preciso agora reconstruir a maçã do rosto.” (A tradução é de Camila Vargas Boldrini e Daniel Lühmann).
O encontro da bela e da fera suscita inúmeras reflexões metafísicas por parte da primeira: “Por que nós nos escolhemos? O que tenho realmente em comum com a fera e desde quando? A verdade sobre mim é que nunca busquei pacificar minha vida, e menos ainda meus encontros. (…) Encontro o que dizer porque a situação de crise sempre me parece boa para pensar; porque ela contém a possibilidade de uma outra vida, de um outro mundo. (…) Penso que, mesmo sem admitir, devo ter ido procurar nos planaltos de altitude aquele que revelaria afinal a guerreira que existe em mim; que certamente foi por esse motivo que, quando ele atravessou o meu caminho, não fugi dele. Ao contrário, mergulhei na batalha feito uma fúria do inferno, e acabamos marcando nossos corpos, cada um com o sinal do outro. Tenho dificuldade de explicar isso em mim mesma, mas sei que esse encontro foi planejado. Há tempos vim preparando o terreno que me levaria até à boca do urso, em direção ao seu beijo. Penso: quem sabe, talvez ele também.”
“A Paixão Segundo G.H.” fala do encontro de uma mulher urbana, uma dona de casa comum, com uma barata no quarto de empregada de seu apartamento e suscita as mesmas questões de autodescoberta.
“Mas por que não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade. (…) contigo começarei a morrer até poder aprender sozinha a não existir, e então eu te libertarei. (…) Minha mão rápida foi à porta do guarda-roupa para fechá-lo e me abrir caminho – mas recuou de novo. É que lá dentro a barata se movera. Fiquei quieta. Minha respiração era leve, superficial. Eu tinha agora uma sensação de irremediável. E já sabia que, embora absurdamente, eu só teria ainda chance de sair dali se encarrasse frontal e absurdamente que alguma coisa estava sendo irremediável. Eu sabia que tinha de admitir o perigo em que eu estava, mesmo consciente de que era loucura acreditar num perigo inteiramente inexistente. Mas eu tinha de acreditar em mim – a vida toda eu estivera como todo o mundo em perigo – mas agora, para poder sair, eu tinha a responsabilidade alucinada de ter de saber disso. (…) nessa espera atenta eu reconhecia todas as minhas esperas anteriores. (…) Também a barata: qual é o único sentimento de uma barata? A atenção de viver, inextricável de seu corpo. Em mim, tudo o que eu superpusera ao inextricável de mim, provavelmente jamais chegara a abafar a atenção que, mais que atenção à vida, era o próprio processo da vida em mim. Foi então que a barata começou a emergir do fundo.”
Tudo isso me remete à velha e desbotada questão – existiria uma literatura feminina? Uma voz delicada saída das profundezas para alcançar o rés-do-chão da grosseria humana? Um homem, um escritor homem, teria tido essa análise tão sutil de um encontro tão brutal, em especial no caso da antropóloga e da besta? Em Clarice, tudo é sutileza de raiz, e a barata é o seu urso doméstico, seu pequeno monstro arquetípico, seu bisão de bolso no quarto de empregada de sua caverna de Lascaux.
Odeio generalizações, gosto de pensar que cada um de nós é único, mas não resisto à tentação de achar que as mulheres – como gênero ainda que social – são superiores aos homens. Escutemo-las.
Rodrigo Murat é escritor
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