ESPERANDO GODARD
Quando Jean-Luc Godard morreu, em 13 de setembro de 2022, eu postei na minha rede social: “Esperando Godard”. Como eu nunca posto nada, o algoritmo ignorou e só chegou ao feed de dez pessoas. Sete não entenderam, duas curtiram e uma comentou: “Eu também”. Claro que era um trocadilho nonsense com o título da famosa peça de Beckett, e eu quase sempre me deixo levar por trocadilhos nonsenses, especialmente em redes sociais, onde eu me sinto falando com todo mundo e com ninguém.
Godard então morreu e eu voltei a vê-lo, a assistir seus filmes incitado não sei mais agora por qual faísca de estímulo. Em algum momento de dezembro, sua obra voltou-me à mente, e eu estou, desde então, revisitando-a: revendo alguns títulos e conhecendo outros.
O primeiro filme que vi de JLG no cinema foi “Salve-se Quem Puder – a Vida”. Não entendi bulhufas, mas não me recordo de ter abandonado a sessão. Fiquei ali, possivelmente entediado, com os olhos pregados à tela, tentando decifrar a dessincronia entre som e imagem. Nessa época, havia vários cineclubes na cidade dispostos a exibir seus filmes em mostras retrospectivas e eu pude assistir, tardiamente na tela grande, à “Duas ou três coisas que eu sei dela”, “O Desprezo”, “Acossado”, “A Chinesa”, “Masculino Feminino”, “Uma mulher é uma mulher” e “Tempo de Guerra”. Eu já era aluno de Cinema na universidade, e gostar de Godard era obrigatório. Por sorte, eu gostava, embora nem sempre entendesse. Na faculdade, assisti, em videocassete, a uma cópia pirata conseguida por um professor pirado de “Je vous Salue Marie”, que tanta polêmica causou à época. Todo dia saía uma matéria no jornal a respeito da proibição do filme em território nacional e a curiosidade de assisti-lo era imensa. Era como fumar um “da lata”. Quem conseguia, ganhava carimbo de cinéfilo máster. Éramos um bando de quinze ou vinte em volta da televisão como arqueólogos descobrindo a última ossada.
Agora, nessa leva de revisões em DVD, me surpreendi com um título que não conhecia – “Tudo Vai Bem”, com Yves Montand e Jane Fonda. Achei tão genial, que convenci o dono da locadora a me vendê-lo.
(Na quadra da minha casa, em Ipanema, jaz a última locadora de filmes do Rio de Janeiro para idosos e capricornianos analógicos com ascendente em Nostalgia e lua em Saturno retrógrado. Seu dono é um sobrevivente, espécie de Antonio Conselheiro da sétima arte.)
No livro de Mário Alves Coutinho – “Jean-Luc Godard – de Acossado a Imagem e Palavra” há um levantamento das citações literárias que Godard faz em seus filmes. Uma, em especial, me chamou atenção. Trata-se de quatro versos do poema “E Nosso Movimento”, de Paul Éluard, lidos pela personagem Natacha Von Braun no filme “Alphaville”. “Vivemos no esquecimento de nossas metamorfoses. Mas o eco que soa o dia todo… este eco fora do tempo, angústia ou carícia… Estamos perto ou longe de nossa consciência?”
O mundo lá fora continua pegando fogo, os militares em seus egos uniformizados, os ianomâmis gritando, crimes cometidos em nome da pátria, congressistas eleitos com fichas sujíssimas, muita coisa ruim e perigosa em meio a ilhas de alienação. Viver é esse pêndulo eterno entre uma satisfação pessoal e um incômodo generalizado com os problemas do mundo. Quantas vezes por dia é preciso ligar o foda-se para que continuemos a dizer e a achar de fato que está tudo bem? As zonas de conforto estão todas zoneadas e o nosso trabalho diário é tentar organizá-las.
Rodrigo Murat é escritor
Imagem:Foto Reprodução