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ESPERANDO KAFKA

Já tive dificuldades com Kafka. Depois de um início promissor de relacionamento com “A Metamorfose”, que devorei aos vinte anos impactado desde a primeira frase – “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso” – tentei, sem êxito, os romances “O Castelo” e “O Processo”. Empaquei em ambos, achando-os impenetráveis.

​Mas, recentemente – via David Foster Wallace, que no texto “Alguns Comentários Sobre A Graça De Kafka Dos Quais Provavelmente Não Se Omitiu O Bastante”1, transcreve o conto “Uma Pequena Fábula” –, tive meu interesse pelo autor tcheco reavivado.

Puxa”, disse o rato, “o mundo fica menor a cada dia. No início era tão grande que me dava medo, eu vivia correndo sem parar, e fiquei contente quando consegui avistar muros distantes à esquerda e à direita, mas esses muros compridos se estreitaram tão rápido que já estou na última sala, e ali no canto está a ratoeira na qual acabarei pisando. “É só você mudar de direção”, disse o gato antes de comê-lo.

Arrebatado pela multiplicidade de sentidos desta narrativa mínima, recorri ao volume “Essencial”, da Editora Penguin, que reúne contos, novelas e aforismos de Franz Kafka. Aproveito o ensejo de fim de ano para compartilhar alguns que considero relevantes para se esperar um início de ciclo auspicioso.

“O verdadeiro caminho passa por uma corda esticada pouco acima do chão. Parece mais destinada a fazer tropeçar do que a ser trilhada.”

“Todo erro humano é fruto da impaciência, do prematuro abandono do método, da ilusória fixação num sonho.”

“Uma gaiola saiu à procura de um pássaro.”

“Você é a lição de casa. Por todos os lados nenhum aluno.”

“Há dois pecados capitais, de que derivam todos os outros: impaciência e indolência. Por causa da impaciência fomos expulsos do paraíso; por causa da indolência não conseguiremos retornar a ele. Mas, pensando bem, talvez a impaciência seja o mais capital dos pecados. Foi por ela que o perdemos; é por ela que não o temos de volta.”

“Como é possível alguém alegrar-se com o mundo, a não ser quando se refugia nele?”

“O animal arranca o chicote das mãos do dono e chicoteia a si mesmo, sem saber que isso é apenas uma fantasia produzida por um novo nó na correia.”

“Na luta entre você e o mundo, apoie o mundo”.

“Não precisas sair de teu quarto. Permanece sentado à tua mesa e escuta. Não, nem mesmo escutes, simplesmente espera. Não, nem mesmo esperes. Fica imóvel e solitário. O mundo simplesmente se oferecerá a ti, para ser desmascarado. Ele não tem escolha, e acabará rolando em êxtase a teus pés.”

​Os dois últimos anos não foram fáceis. Aguentar a pressão das ameaças constantes de um invasor invisível e de uma penca de agressores urrando aos quatro ventos seu ódio de gabinete, embasados por uma retórica retrógrada em nome da pátria, família e propriedade – deles, claro – talvez tenha feito de nós um povo mais forte e animado para a luta.

Não sei se ajuda a pensar que nada disso é novo, que toda a história da humanidade é velha como o sol e caminha em espiral, volta e meia reencontrando os mesmos fantasmas aparentemente superados.

Kafka morreu relativamente jovem – vencido por uma bactéria – mas imortalizou-se em adjetivo – kafkiano – para expressar tudo aquilo que não se entende: o absurdo da vida, o sinal contrário da morte. Entre um e outro, restam as palavras. Que elas nos sirvam de faróis para iluminar o caminho obscuro.
Feliz 2022!

1 O texto consta do volume “Ficando Longe do Fato De Já Estar Meio que Longe de Tudo”, Companhia das Letras, tradução de Daniel Galera e Daniel Pellizzari
2 Traduções a cargo de Modesto Carone e Ênio Silveira​

Rodrigo Murat é escritor.

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