A linguagem é um vírus, tá ligado?
E nós, os hospedeiros da retórica, vamos ajudando a espalhá-los e perpetuá-los em novas cepas. E já que o assunto é esse: o atual coronavírus rapidinho ganhou corruptela – como nesse diálogo coloquial que pipoca nas bocas:
– Minha sogra pegou o corona.
A oralidade é preguiçosa e gosta de facilitadores. Reduzir um termo, dar um apelido a ele, é uma forma de apropriação, de demonstrar que o assimilamos e lhe somos íntimos. Inserido no contexto, zona de conforto, tipo assim, a nível de, já é, partiu, formou – quem nunca usou um petardo desses, que atire a primeira pedra.
Há anos atrás, num workshop teatral, ouvi pela primeira vez duas expressões que depois cairiam na boca do povo: lugar e sair da casinha. Lá pelas tantas, o ator responsável pela oficina tascou essa:
– Tchekhov me coloca num lugar! Sabe esse lugar da tristeza, da falta de perspectiva de um futuro solapado por um presente que se arrasta e insiste em permanecer levando tudo ao oblívio? *
Era um sequestro do substantivo “lugar” que provavelmente já grassava na classe teatral, e acredito que até hoje permaneça com ela, embora alguns participantes do atual BBB – até por alguns serem atores – insistam em praticá-lo:
– Não vamos ficar nesse lugar de competição. Vamos trabalhar o nosso lugar de amor e concílio.
Quanto a sair da casinha no sentido de pirar, surtar, chutar o pau da barraca, não sei se continua em voga ou se caducou antes de ser dicionarizado.
Agora entrou na moda o sobre isso – combina com o sofá em L e com o biquíni de poá:
– Eu e a Paula terminamos.
– Sério? Por que?
– Ela me traiu com o Caio.
– Você descobriu e caiu fora?
– É sobre isso.
Já comentei num artigo anterior que transa nos anos 70/80 era uma palavra coringa que servia pra tudo e que geral usava:
– Vamos lá em casa transar um arroz integral?
– E aí, como é que foi a transa com o teu pai? Ele topou te emprestar o tutu**?
– Estou doido pra transar uma viagem maneira pra Machu Picchu.
– Essa roupa tá super transada, bicho!
Em algum momento, o termo caiu na cama e não saiu mais de lá. Impossível imaginar alguém usar transa hoje em dia em outro contexto que não o sexual.
E o tal do diferenciado? Cansaram de diferente? Deram um upgrade no adjetivo para agregar valor?
– É um strogonoff diferenciado: leva extrato de tomate orgânico no lugar do ketchup.
A lista é infinita, mas vamos terminar com música – ainda que fique faltando a melodia. (“Olha, fica faltando a melodia!”) ***
“O substantivo/É o substituto do conteúdo/O adjetivo é nossa impressão sobre quase tudo/O diminutivo é o que aperta o mundo/E deixa miúdo/O imperativo/É o que aperta os outros e deixa mudo/Um homem de letras dizendo ideias/Sempre se inflama/Um homem de ideias nem usa letras/Faz ideograma/Se altera as letras/E esconde o nome/Faz anagrama/Mas se mostra o nome com poucas letras é um telegrama/Nosso verbo ser é uma identidade/Mas sem projeto/E se temos verbo com objeto/É bem mais direto/No entanto falta/Ter um sujeito/Pra ter afeto/Mas se é um sujeito/Que se sujeita/Ainda é objeto/Todo barbarismo/É o português/Que se repeliu/O neologismo é uma palavra/Que não se ouviu/Já o idiotismo/É tudo que a língua/Não traduziu/Mas tem idiotismo/Também na fala/De um imbecil. (“Gramática”, José Miguel Wisnik e Luiz Tatit)
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* Claro que as palavras não foram essas. Trata-se de um exemplo floreado.
** Tutu aqui sinônimo de dinheiro, não de saia de bailarina
*** Verso de “Canção Bonita”, de Luiz Tatit
Rodrigo Murat é escritor
iMAGEM: https://pixabay.com/pt/vectors/boca-abrir-f%c3%aamea-l%c3%adngua-dentes-312558/
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