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LARANJAS MECÂNICAS

LARANJA MECÂNICA

LARANJAS MECÂNICAS

Ando meio assustado com a quantidade de vezes que venho desviando os olhos da TV para escapar de balas perdidas, pauladas, socos, chutes e pontapés. Os telejornais viraram snuff movies com a reprodução em looping de imagens de crimes hediondos registrados pelas câmeras de segurança. Uma colunista de O GLOBO afirmou que assistiu diversas vezes ao vídeo do congolês sendo assassinado no quiosque carioca sob a alegação de que precisava entender o fato.
Entender o que – com quantos paus se faz um linchamento? É preciso ver para lembrar que um dos combustíveis humanos é o ódio, e que em alguns casos o tanque está pra lá de cheio? Até a mídia mais elegante, conduzida pelos âncoras mais articulados e bem vestidos, vem se esmerando na exibição sistemática de gente morta. As imagens caseiras do menino Henry, antes de ser morto pelo padrasto, foram servidas de hora em hora durante dias como se fôssemos todos da família do coitado e merecêssemos um último momento de intimidade com ele. Se houvesse câmeras em seu quarto, as imagens de sua execução teriam sido transmitidas? Quantos teriam assistido – não por pulsão perversa, claro, mas para “entender o fato”? Estamos condenados, tal qual o protagonista de “Laranja Mecânica”, a sessões programadas de ultraviolência como método de superação e cura? Certamente há os que defendem a ideia de que é preciso mesmo mostrar tudo sem filtros nem cortes como medida socioeducativa, enquanto outros se agarrarão à tese de que violência gera violência, e que veicular essas imagens só serve para injetar ainda mais sangue nos olhos dos desesperados, como no caso dos rapazes de Columbine, que, supostamente intoxicados por consumo prévio de material beligerante, saíram atirando a esmo no campus em que estudavam. Bom, talvez aí possamos recorrer a Fernando Pessoa e à primeira estrofe de seu “Opiário”: “É antes do ópio que minha alma é doente/Sentir a vida convalesce e estiola/E eu vou buscar ao ópio que consola/Um Oriente ao oriente do Oriente”. No livro “Graça Infinita”, de David Foster Wallace, há um entretenimento fílmico sob a forma de cartucho, que uma vez que se comece a assistir, não é possível mais interromper, o que na maioria dos casos acaba resultando na morte do espectador por overdose de riso. Talvez alguns acreditem numa sociedade punitiva-corretiva que ensina através do EXEMPLO, e estejam certos de que um dia a palavra BASTA deixará de ser um apelo retórico. Ao largo de tudo isso, o BBB 22 continua aquela platitude de sempre, mas, pelo segundo ano consecutivo, continuo achando irresistível assistir – no pay per view, claro, já que a edição na TV aberta transforma tudo num pastelão moralista – a pessoas escovando os dentes, lavando alface ou simplesmente pensando. Acho um tremendo de um alívio dramático, um tremendo de um detox dramatúrgico poder ver pessoas em silêncio em meio a tanta imagem querendo dizer tanta coisa, discutir tanta coisa, impor tanta coisa. Andy Warhol fez filmes sobre isso e a intelligentsia achou o máximo.

Rodrigo Murat é escritor
Rodrigo Murat

Imagem: Reprodução Filme Laranja Mecânica de Stanley Kubrik

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