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MEU FILME DARIA UMA VIDA

MEU FILME DARIA UMA VIDA

“Existem bilhões de pessoas vivendo no mundo, e cada uma delas acredita que sua vida daria pelo menos uma história. Só essa ideia já é suficiente para fazer a sua cabeça rodar. Se surgisse um escritor, ou melhor ainda, se fosse produzido um escritor obcecado o suficiente para registrar todas essas bilhões de histórias, e depois fosse cancelando tudo que elas tivessem em comum, quanto supõe que restaria? Mal e mal uma frase de cada história, de cada destino humano, um momento como uma gota no oceano, uma experiência irrepetível de compreensão ou de um encontro, um instante de percepção ou dor – mas quem seria capaz de identificar essa gota, quem poderia separá-la em meio à torrente do oceano? E por que seria preciso inventar histórias novas?” (Ivan Klíma*)

No dia 22 de fevereiro fez 500 dias que o narcotraficante André do Rap, responsável por intermediar o envio de toneladas de cocaína para a Europa e África, saiu do presídio com alvará de soltura emitido pelo Supremo Tribunal Federal e sumiu no mundo. A Polícia Civil de São Paulo o acusa de ocultar R$ 30 milhões na compra de duas lanchas, um helicóptero, quatro jet skis, um Porsche e duas mansões no litoral do Rio de Janeiro. Quando foi preso, em 2019, o criminoso estava de posse de 32 celulares e usava vários codinomes para comandar seus negócios: Boy, Vencedor, Alexandre Pato, RM e Andressa. Do Rap já morou na Holanda, Espanha, Mônaco e Itália, onde estabeleceu contatos com a máfia italiana e sérvia.

Tem vidas que parecem filmes de ação com alto poder de investimento e retorno certo de público. A minha daria no máximo um documentário de baixo orçamento para meia dúzia de cinéfilos empedernidos: o dia a dia de um escritor cinquentão que há dois anos – muito por conta da pandemia – não faz outra coisa senão: ler, escrever, nadar, ouvir música, ir à praia e atravessar a rua para almoçar e jantar com a mãe idosa no prédio em frente. Não que eu quisesse ser propriamente um André do Rap, mas que ler sobre a sua vida no jornal me deu uma comichão de sacolejo, deu.

Imagina ter esse monte de disfarces, carros, lanchas, helicópteros; saltar de país em país com a Interpol e o Ministério da Justiça na cola como um vilão do James Bond, com direito a mil efeitos especiais, locações sensacionais, e ainda pilhas e pilhas de dinheiro vivo em maletas Vuitton! Será que André do Rap está vivendo mais intensamente do que eu – ainda que por caminhos tortos que fatalmente o levarão a um the end não exatamente happy? Será que André do Rap aguentaria uma semana da minha pacata existência? Bem, agora eu vou até a varanda ler o monólogo da Molly Bloom do “Ulisses”. Bah!

Tudo bem que se André às vezes é Andressa, eu também já brinquei de usar saias metafísicas ao escrever um livro sob pseudônimo feminino – Sylvana Sympson. Cheguei a conversar num chat promocional do UOL com “fãs” da autora como se eu fosse a tal, e só não fui a um programa de televisão comandado por Adriane Galisteu para ser entrevistado(a) porque seria um pouco demais ficar de peruca na penumbra fazendo voz de falsete. Porém logo veio Bruna Surfistinha com seu “Doce Veneno do Escorpião” – ambos os livros lançados à mesma época: 2005 – e roubou de meu alter ego todo o público interessado em relatos sexuais picantes. Bruna Surfistinha podia até ser também um codinome mentiroso, mas a moça – Raquel Pacheco – de fato existia, e de fato viveu tudo o que escreveu, ao passo que eu estava só tergiversando e testando os limites da verossimilhança.

A vida dos falseadores exerce um grande fascínio. Duas histórias baseadas em fatos reais sobre indivíduos que se fizeram passar por outros andam bombando no streaming. Uma é a de um Don Juan do Tinder, que aplicava golpes milionários em troca de amor sincero; a outra, a de uma pobretona russa que se fez passar por uma herdeira milionária norte-americana e engabelou gregos e troianos.

Às vezes eu gostaria de ser outro, até para não precisar falar tanto de mim.

“Que será que nos falta neste mundo para estarmos tão dispostos a começar tudo do início, vezes sem conta, com uma espécie de eterna esperança de que a próxima sequência será melhor, eventualmente mais divertida, mais estimulante? Hollywood entendeu isso há muito tempo e nos filmes que produz, a cada 45 segundos, surge uma nova descarga de adrenalina, sendo toda a narração uma sucessão de inícios excitados.” (Matéi Visniec)**

*Ivan Klíma é um autor tcheco. O extrato em questão é do livro “Amor e Lixo”, lançado pela Editora Best-Seller, na tradução de Eduardo Francisco Alves.
**Matéi Visniec é um autor romeno. O extrato em questão é da quarta capa do livro “O Negociante De Inícios de Romances”, lançado pela Editora É Realizações, na tradução de Tanty Ungureanu.

Rodrigo Murat é ecritor
Rodrigo Murat

Imagem: https://pixabay.com

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