MILLÔR DE SUNGA E A MULHER DE BRANCO
Esta semana, dois personagens legendários das areias de Ipanema apareceram no jornal: Millôr Fernandes e Ana Maria Carvalho. Millôr porque completaria 100 anos, Ana Maria porque faleceu aos 75. Cresci assistindo aos dois em suas atividades praianas – não juntos, é claro. Millôr corria, de sunga preta,enquanto Ana Maria evoluía à beira-mar em
passos de bailarina num biquíni mínimo ao som de uma música imaginária saída da sua rádio-cabeça. Como só usava roupa branca, passou a ser conhecida, com os anos, pela alcunha Mulher de Branco.
Devia ser lá pelos anos 70, eu estava no Castelinho com minha irmã quando ela passou tresloucada e deixando à mostra um colar de estrelinhas tatuadas no contorno das nádegas. Minha irmã então disse que era para esconder as cicatrizes. Não sei como minha irmã tinha essa versão. Eu era tão criança, que a explicação pode ter sido outra. Mas eu lembro das estrelinhas. Até porque, vi inúmeras vezes. Uma vez, eu caminhava no calçadão e a Mulher de Branco, como de praxe, rodopiava na areia. No momento em que a vi, começou a tocar no meu fone de ouvido a música de Rita Lee “Dona Doida”: “Dó, ré, mi, fá, sol, lá se vai Dona Doida atrás da banda/Pintando o sete/Ela quer confete, serpentina/A sua sina é ser feliz/Bota as asinhas de fora/E voa, voa numa boa/O céu não é o limite/A vida é uma caixa de Pandora.” A vida virou um filme com trilha sonora. Musiquei-lhe os passos perfeitamente ritmados aos acordes da canção.
Ana Maria era filha de um famoso radialista – Luis de Carvalho – e foi casada nos anos 70 com o músico Marcos Valle. Quando trabalhei com Maria Carmem Barbosa – filha do grande e múltiplo Haroldo Barbosa – na criação de textos para Luiz Fernando Guimarães na TV Globo, ela me contou que fazia um curso de teatro com Ana Maria quando, um dia, ela apareceu na turma de chupeta e dizendo coisas ininteligíveis. Reza a lenda que foi por conta de um ácido lisérgico. Ou de dois, ou de três, ou sabe-se lá que quantidade dessa ou de outra droga. Fato é que ela
passou esses anos todos conversando com seres de outras galáxias e andando por Ipanema com um olho no gato e o outro no céu. Nos últimos anos, saiu da casa em que morava na rua Nascimento Silva – vendida e transformada em prédio – e foi para um apartamento na rua Vinícius de Moraes. Deixou de ser vista na orla, parou de usar branco e entrou na fase azul. Durante a pandemia, em meus passeios diários pelos labirintos do bairro, via-a sentada em frente ao restaurante Natural da rua Barão da Torre. Era lá que ela batia ponto – sem máscara – com sua mala de rodinhas.Uma vez, flagrei-a nua, trocando um modess ou fralda. Desviei rápido o olhar e ela me encarava rindo. Não sei se me conhecia, mas como estava sempre conversando e gesticulando, era como se fizesse de todos interlocutores.
Millôr morava na Vieira Souto mas tinha escritório na rua Gomes Carneiro na quadra de onde eu morava e ainda moro. Teresa, que cresceu na casa de minha mãe nos anos 1940, foi sua funcionária por décadas. Millôr chegou a presenteá-la com um apartamento em Copacabana. Ganhei vários livros autografados dele, mas a única vez em que fui ao seu estúdio-cobertura,ele não estava.
Uma vez, no cinema – se não me falha a memória assistindo ao filme “O Gênio Indomável” – no falecido cinema Roma Bruni, na praça Nossa Senhora da Paz, que virou loja de departamento – um casal começou a falar na fila de trás. Incomodado, lá pelas tantas, me virei pronto pro esporro, mas engoli em seco quando vi quem era: Millôr e Cora Rónai. Me senti, então, privilegiado por estar a um metro de tão ilustres comentários e tolerei melhor o blábláblá.
Millôr agora é estátua no Arpoador e Ana Maria possivelmente está em Marte. Ipanema vai deixando para trás seus símbolos e criando outros que, possivelmente, eu não assimilarei da mesma forma, porque as memórias mais candentes, mais doces e nostálgicas, são as saídas do torvelinho da infância.
Millôr era conhecido, entre outras coisas, por ser um ótimo frasista. Terminemos, pois, com uma pérola de sua lavra:
“Sexo é a única atividade que pode dar prazer a duas pessoas que se detestam.”
O humor está no ar.
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Castelinho era o nome do trecho de praia em Ipanema em frente ao Colégio São Paulo, próximo ao Arpoador. Isso porque no início do século XX, havia ali um belíssimo casarão em forma de castelo, uma das primeiras residências da então Villa Ipanema. Nos anos 70, a residência deu lugar a um bar chamado Castelinho.
Hoje é um edifício de luxo e pouca gente sabe do seu passado glamuroso.
Rodrigo Murat é escritor
Imagem:Ricardo Moraes/Folhapress