MISHIMA EM CHAMAS
MISHIMA EM CHAMAS
Conheci Mishima nos anos 80 na coleção “Circo de Letras” da editora Brasiliense. Nela foram lançados “O Almoço Nu”, de William Burroughs, “Pergunte ao Pó”, de John Fante, “O Coração nas Trevas”, de Joseph Conrad, “Ópio”, de Jean Cocteau, “Pra Cima com a Viga, Moçada”, de J.D. Salinger, “Um atrapalho no Trabalho”, de John Lennon, entre outros títulos sugestivos que atiçam o apetite voraz de qualquer leitor faminto.
“Sol e Aço”, o livro de Mishima escolhido para o cardápio, foi lançado em 85, na tradução direta do japonês feita por Paulo Leminski, que também assina o posfácio.
“Palavras são um recurso que reduz a realidade a uma abstração que nossa razão possa aceitar, e em seu poder de corroer a realidade, inevitavelmente insinua-se o perigo de que as próprias palavras também sejam corroídas.” (Yukio Mishima)
“Sol e Aço” deveria ser áudio-book obrigatório nas academias de ginástica. Enquanto os alunos malhassem, ao invés de Alicia Keys ou 50 Cent nos ouvidos, eles escutariam Mishima. Digo isso porque o livro traz uma investigação acurada sobre o papel – desculpem a redução de tanta filosofia numa só frase rasa – do enrijecimento muscular na construção de um caráter. Novamente empobrecendo tudo: Mishima malhou pra se matar, em seu manifesto público, em seu exército de 2 homens como um grito lançando ao mundo vísceras expostas.
“Certo dia de novembro de 1970, os jornais da capital do Japão estamparam em suas colunas policiais uma notícia, no mínimo, inquietante. No dia anterior, um pequeno grupo de praticantes de artes marciais tinha invadido, com violência, as dependências do Quartel das Forças Armadas de Tóquio. O líder do grupo, um homem forte, aparentando uns quarenta anos, acompanhado de um jovem, chegou até o gabinete do Comandante da praça, diante do qual os dois cometeram haraquiri, o suicídio ritual da classe samurai.
Antes do gesto supremo, acrescentaram os periódicos, o líder dos invasores leu para a tropa que se encontrava no local uma proclamação onde denunciava violentamente a ocidentalização, a decadência dos códigos de honra tradicionais do País do Sol Nascente. E a tropa pôs-se a rir.
O grupo invasor era a Tate no Kai, a Sociedade do Escudo, um exército privado de cultores de artes marciais, organizado e dirigido pelo escritor Yukio Mishima, pseudônimo de Kimikate Hiraoka.” (Paulo Leminski)
Sempre achei o suicídio um tema de fascínio – discussão filosófica acerca da vida e do livre arbítrio pensada e experimentada no corpo.
Na minha turma de colégio – ginásio, anos 70, long, long time ago – tinha uma menina chamada Ana Luísa. Ela ia pra aula com um daqueles conjuntos tradicionais da Adidas azul-marinho – casaco e calça com listras brancas nas laterais. Ana Luísa tinha autorização dos pais junto à Secretaria para permanecer em classe durante o recreio, talvez porque fosse avessa a balbúrdias – o motivo real eu não sei ou não lembro. Eu também era avesso a balbúrdias, e preferia ficar com ela conversando sobre teatro do que nas rodinhas sociais de coisa nenhuma no pátio. Ela era um pouco mais velha do que nós da turma, tinha o cabelo castanho encaracolado dividido ao meio e o olhar de quem já viu tudo e não acredita que haja novidades.
Um dia chegou a notícia de que ela tinha se matado. Num gesto abrupto, atirou fogo ao corpo com ajuda de álcool. Alguns alunos fizeram piada e lhe deram apelido – bullying póstumo. Perdi minha interlocutora de recreio mas acho que entendi seu ato – quase político – ainda na época dos meus 13 anos. Chegou a circular o motivo pelo qual ela teria feito o que fez – coisa que não vale a pena aqui relatar, até porque, ainda que motivos expliquem o óbvio, não acredito que suicídios sejam gestos óbvios que careçam de explicação.
“Temos dois tipos de vozes. Uma de dentro, a outra de fora. A de fora é o afazer de cada dia. Se o espírito que responde ao dever correspondesse exatamente à voz de dentro, então seríamos todos supremamente felizes.” (Yukio Mishima)
Texto: Rodrigo Murat é escritor
Imagem:https://coisasdojapao.com/2020/05/yukio-mishima-o-autor-japones-que-cometeu-seppuku-suicidio-ritualistico/