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O IMBRECHÁVEL

O IMBRECHÁVEL

Imbrechável = sujeito sem brecha; incolor; opaco; que não se revela; não se mostra; não se relativiza; que no fundo não gosta de si e no raso odeia o que, como disse Caetano, não lhe é espelho: mulher, índio, nordestino, chinês, democrata, preto, pobre, veado.
Estudo de caso:
– Morreu João Gilberto.
– Quem? Não conheço.
– Morreu Murilão do Pó.
– Manda condecorar e aciona a Esquadrilha da Fumaça.
Diria o Imbrechável se confessasse: “Não, eu não posso ser entrevisto. Por dentro, eu sou uma massa amorfa de falsidades, e é por isso que já de manhã eu me abotoo no fato e me coloco na máscara com o riso escarninho do deboche institucional.
– O inferno são os outros… poderes!
O sujeito que comprou o céu com dinheiro vivo e lá instalou seu Deus “Acima De Todos” com sigilo de cem anjos.
Fico imaginando o diálogo dominical em família:
– Paizinho, não quer vir almoçar aqui em casa?
– Qual o menu, porra?
– Lula à dorê.
– Hahaha.
E esse outro, na cama palaciana, entre lençóis quatrocentos fios, do Bufão-Mor com a Primeira-Boba:
– Morzão, você acha que pode dar ruim esse bafafá dos pastores com a foto estampada na Bíblia?

– Imagina! Qualquer coisa, eu boto na tua conta. Já tá toda arrombada mesmo. Hahaha.
Mi cheque, su cheque.
“O mito não oculta nada”, declara Roland Barthes em “Mito Hoje” (1956), numa citação que extraio do artigo de Susan Sontag sobre o autor no livro “Questão de Ênfase” (Companhia das Letras).
Tanto já foi dito, tanta mente evoluída já se debruçou para decifrar a avalanche de signos da cartilha ignóbil, que sinto fazer chover no molhado. Qual a melhor tática, então? Deixar pra lá? Varrer para debaixo do tapete? Ou delegar para os anais da história – anais com duplo sentido, claro, já que tudo aqui sabe a chulo:
– Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, diga ao povo que finco… o pau na dama de cópulas que cá, entre nós, dá de dez na do Nove-Dedos. Hahaha.
Leio em algum lugar que há 70 anos alguém já investigava a associação entre a extrema-direita e a pornografia. É uma linguagem fácil, de baixo ventre, todo mundo entende, não exige sinapse. Kit-hetero e mamadeira de capiroto.
Definitivamente, a realidade não é para todos. Ou então são duas: a do “Nós” e a do “Eles”. E eu que já fui acusado de endossar o discurso do “Nós contra Eles” como se esse discurso não se endossasse por si só ou por quem acusa o outro de fazê-lo. Será que é preciso ensinar os outros a pensar direito, completo, esticado? Preferia não – à la Bartleby. Sou mais de apostar na capacidade intelectual de cada um, como a do motorista de táxi que me disse:
– Eu sou preto, pobre, nordestino, o cara não gosta nem de uma coisa, nem de outra, nem de outra, eu vou gostar do cara?”
O que não lhe é espelho.
Sim, está tudo estranho e em trevas. Mas não é a primeira vez nem será a última. Só espero que não seja agora, de enfiada, que o pesadelo se repita. Precisamos de um líder, ainda que gasto e defeituoso, mas brechável, que o poder, por si só, já é por demais opaco e corruptível.

“Sobre o tema da presunção – é pior do que ingenuidade – de tantos intelectuais que assumem posições públicas e endossam ações coletivas que afetam países sobre os quais eles não sabem quase nada, ninguém se expressou melhor do que um dos mais comprometidos intelectuais do século XX, Bertold Brecht (que sem dúvida sabia do que estava falando):
No momento de marchar, muitos ignoram
Que o inimigo marcha à sua frente.
A voz que lhe dá ordens
É a voz do inimigo e
O homem que fala do inimigo
É o próprio inimigo.”
(Susan Sontag, “Questão de Ênfase”, Cia das Letras, tradução Rubens Figueiredo)

Rodrigo Murat é escritor
Rodrigo Murat

Imagem de Roland Schwerdhöfer por Pixabay

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