É espantoso constatar que aqueles familiares conservadores que no último pleito apertaram, felizes e ufanos, o 17, três anos depois das toneladas de caos e destruição que se abateram sobre o país continuem fechados com o Mito. Mas também, como ser diferente? Mito é mito. Mito não se tira do pedestal e substitui por outro. É preciso coerência – ainda que inventada.
Durante a ceia do 24, na casa de minha irmã, não se tocou no assunto política, mas, quando às oito e meia começou um panelaço tímido com a adesão precária de dois apartamentos, um conviva nervoso perguntou se não poderíamos ligar o ar-condicionado. Mais tarde, o mesmo conviva, agarrado a um fiapo de esperança, mencionou que um vidente na TV garantiu que o Mito se reelege. Preferi ficar calado a sacar meu espadachim verbal e começar o desgastado duelo de narrativas. Já fui acusado, em outra comemoração familiar, de estar emulando o discurso do Nós Contra Eles, então, agora, sempre que surge a oportunidade, conto até doze e faço cara de It.
O que me espanta é: há os que odiavam o governo anterior por, entre outras coisas, temer a implantação do comunismo no país. Ok, legítimo. O comunismo é mesmo um bicho-papão medonho que há décadas assusta os probos e, como todo mundo sabe, quem tem terra, tem medo. Surgiram os escândalos – mensalão e que tais – e os temerosos puderam sorrir aliviados ao constatar que a realidade confirmava o que já ia em suas cabeças. Eis que das sombras se ergue o Mito:
“Opa, desse Cara eu gosto. Esse Cara fala a minha língua. Esse Cara combate o inimigo. Esse Cara é militar. Todo militar é reto. Logo, esse Cara o é.”
Pois bem, o Cara é eleito e começam a surgir os escândalos – bolsolão e que tais – e aí não é mais verdade. Como assim? Não são as mesmas fontes que divulgam os diferentes escândalos governamentais? Então para um se aplica, para o outro, não? Esses mistificadores não percebem que estão tendo de fazer um contorcionismo danado para que a realidade caiba no que eles querem? Como eles interpretariam, por exemplo, frases sinceronas do tipo: “Vamos parar de mimimi, quer vacina, pede pra mãe”?
“Ah, é exagero. O Cara não quis dizer isso. É que ficam enchendo o saco dele, aí ele explode.”
Entendi: o Cara é espontâneo, humano. Todo homem explode. O Cara é homem. Logo, também tem o direito. Ok, mas acho que eu “preferia” ouvir:
“Eu sei que é tudo verdade: que o Cara é misógino, homofóbico, antivacina, negacionista, armamentista, antiecológico, mas eu gosto dele, concordo com as ideias, e não há de ser você que vai me convencer do contrário.”
Deve ter gente por aí que diz isso, mas ainda não chegou a meus ouvidos. (Que bom!) E como eu não quero mais, a essa altura dos fatos, duelar narrativas – não me interessa ganhar nem perder –, faço minha cara de pronome impessoal – ainda que sob a pena de ser taxado de isentão.
Acho que a primeira vez que fiz cara de It e paguei de isentão foi durante uma aula de Ciências no laboratório do colégio. Um garoto se virou para mim e, muito compenetrado, disse:
“Eu tenho uma coisa pra te contar: Papai Noel existe.”
Nós não estávamos mais em idade de acreditar no Bom Velhinho – devíamos ter uns 7 ou 8 anos – e eu fiquei na dúvida se o coleguinha estava tentando testar meu grau de ingenuidade ou se de fato acreditava no que dizia. Por temperamento, ouvi-o atentamente, e não é todo improvável que eu tenha, até mesmo, concordado. (Faz cinco décadas esta cena, não sou capaz de lembrar dos diálogos.)
Talvez o mundo não evoluísse se todos pagassem de isentões. Que bom que há os que lutam, que esperneiam, que esbravejam, que sacam seus espadachins e duelam. Preciso aprender com eles.
Dois dias depois do Natal, não aguentando o absurdo de saber que um parente não vacinado postou em sua rede que trinta atletas morreram após tomarem a vacina da Covid, mandei por zap para X. – uma outra personagem da família – o seguinte textão nada isentão:
“Para saber se uma notícia é verdade, é só dar um Google e usar o bom senso. No caso do Y., ele decorou a cartilha do Olavo de Carvalho que reduz tudo a dezessete sinapses e reza que o mundo é dividido entre esquerda e direita – sendo a esquerda o vilão; a direita, o mocinho.
Ser pró-vacina é ser de esquerda, logo ele precisa jogar essa ideia na caixa do vilão; ser pró-economia e liberdade de ir-e-vir é de direita, então, beleza. O importante é que os fatos coincidam com o que ele já pensa anteriormente – seja fake ou não. Aí se você levanta alguma suspeita sobre a sua crença, você já é logo jogado na caixa esquerda.
Quer dizer, é um jogo muito primário, de contos de fadas, bem x mal, para atacar um lado, eu preciso me agarrar a outro, para eu me sentir confortável no mundo, eu preciso adotar um lado e fazer com que tudo coincida com o que eu já pensava antes, ainda que para isso eu tenha que retorcer bastante a realidade acusando os outros – oh, a mídia!, oh, a Globo!, oh, a Pfizer! – de estarem de conluio tentando me enganar.
Resumo: o Y. tem uma visão infantil do mundo. Ele tá lá na bolha dele, endossado por milhares de outros em suas bolhas mundo afora que pensam igual, enquanto a Ciência vai fazendo o seu papel e acabando com a pandemia com as vacinas. De mais a mais, é claro que tem gente que morreu depois de tomar a vacina.
Uma humanidade “inteira” está sendo vacinada. Quantas pessoas morrem por dia? Quantas pessoas tomaram Coca-Cola no último dia de suas vidas? E a causa mortis foi a Coca-Cola? Se trinta atletas tivessem de fato morrido, a mídia conseguiria abafar, as famílias e os amigos seriam silenciados para não atrapalhar o lucro das grandes corporações? A Pfizer comprou o mundo e está pagando altas indenizações por baixo dos panos?”
É incrível como se pratica o mal em nome do bem nesse perverso jogo de espelhos e um grande números de pessoas cai como um patinho.”
Sim, Papai Noel existe.
Rodrigo Murat é escritor
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