O SILÊNCIO COMO TELA DE DESCANSO
Pouco silêncio por tudo.
Quem escreveu uma peça com esse título ao contrário – “Muito Barulho Por Nada” – foi William Shakespeare, que, a seu tempo, também enfrentou a peste, também viu os teatros de Stratford-upon-Avon fecharem as portas, também se trancou em casa para, apartado de sua trupe, seguir produzindo. Mas quem me vem à mente neste momento tortuoso que vamos atravessando, entre assustados e esperançosos, é Samuel Beckett, que a cada dia torna-se mais popular por conta de sua emblemática frase “I can´t go on, I´ll go on”.
Nunca os ponteiros desse relógio linguístico soaram com tamanha pontualidade. Antes eu pensava neles nos momentos de angústia e de sensação de paralisia. Agora é o tempo todo, inclusive em sonhos. A cada notícia amarga: “I can´t go on, I´ll go on”; a cada declaração do Sinistro da Saúde, “I can´t go on, I´ll go on”; a cada negacionismo proferido em nome da arrogância: “I can´t go on, I´ll go on.”
Eu também não posso mais ir adiante e vou, e sigo, e continuo. Porque sou teimoso. Porque tenho por hábito ser otimista, fútil, urbanita, leviano, vaidoso, capricorniano, vivo. Toda e qualquer atividade, todo e qualquer momento de nosso dia a dia está aos pés dessa montanha de cadáveres. Não que antes não se morresse; não que depois não vá se continuar morrendo; mas é que a morte em tempos de pandemia ganha ares de paródia – se é que paródia é o termo certo para emular tragédia repetida a cada minuto. Agora, por exemplo.
Uma pandemia nos obriga a pensar que, para além de indivíduos, somos espécie. Não estamos acostumados a lembrar disso. Cada um vivendo a sua vida egoísta, imerso em problemas comezinhos e interesses imediatos. E é por isso que tantos relutam e vociferam. O xerife mesmo do Planalto chegou a dizer – enigmático – que há algo mais importante do que a vida: a liberdade. Sim, meu caro: mortos, não há dúvida de que estamos livres. Inclusive de trabalhar, usar máscara e depender de auxílio emergencial. Mas eu acho que não foi bem isso o que você quis dizer.
O mundo está perplexo com tudo, mas no caso específico do Brasil há um teatro da crueldade encenado pelas altas hostes. Um melodrama cafona com direito a galãs ladrões, advogados gângsteres, dublês de ministros empenhados em obstruir, militares rancorosos tentando corrigir o curso da História na canetada, mansões de seis milhões de irreais com vista para o Lago e o Chorume do Detrito Federal.
Não está fácil ser alegre. Penso em músicas que ajudem.
“Eu vou te dar alegria/eu vou parar de chorar/eu vou raiar um novo dia/eu vou sair do fundo do mar/a tristeza é uma forma de egoísmo” (“Alegria”, Arnaldo Antunes)
“Vou cantando/fingindo alegria/para a humanidade não me ver chorar” (“Alegria”, Assis Valente/Durval Maia)
“Você estava tão feliz/que eu pensei que você fosse explodir/eu achei estranho/nós nem estamos em fase de felicidade/o que é que deu na Vera?” (Época de Sonho, Luiz Tatit)
“Vê se alegra tudo agora/vê se para de chorar/abre os olhos/mostra o riso/quero, careço, preciso/de ver você se alegrar” (“Um Dia”, Caetano Veloso)
Façamos silêncio. As verdades estão muito barulhentas, concorrendo entre si para ver quem é que ganha. Talvez dentro de nós encontremos uma resposta calma, sóbria e equilibrada capaz de nos devolver uma perspectiva de futuro e, com ela, a saída desse labirinto.
I´ll go on.
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“Disseram que Shakespeare sendo a terra, saem dele os mortos. Quem isto afirmou, jogou com os símbolos, e os símbolos são a atmosfera da alta poesia.” (Tomás Murat)
Texto: Rodrigo Murat é escritor
Imagem de Ernie A. Stephens por Pixabay
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