O ÚLTIMO DOMINGOS
O ÚLTIMO DOMINGOS
A única vez que eu saí de casa para ir ao cinema na pandemia foi para assistir ao último filme do Domingos de Oliveira. Não havia ninguém na sessão. Mesmo assim, atravessei-a de máscara, com saudades do tempo em que rir, chorar, espirrar e tossir no meio de uma plateia não eram motivo de pânico ou de infração.
“Os 8 Magníficos” reúne, na aprazível sala de um apartamento durante um dia de domingo, oito atores famosos que, numa espécie de terapia e catarse, abrem-se para falar das dores e delícias de ser quem eles são. Eles são: Eduardo Moscovis, Fernanda Torres, Sophie Charlotte, Carolina Dieckmann, Wagner Moura, Mateus Solano, Maria Ribeiro e Alexandre Nero. Além deles, aparecem, de relance, os codiretores Matheus Souza e Priscila Rozembaum, além do próprio Domingos regendo, da cadeira de rodas, o set.
A imagem na tela vem quase sempre dividida, flagrando um mesmo ponto da narrativa em ângulos diferentes, fragmentando ainda mais o amoroso discurso e dando ao espectador a chance de escolher onde quer pousar o olho e o coração. Domingos era uma pessoa amorosa. Se existe um tema que perpassa sua obra é o amor – e todas as loucuras que cometemos em seu nome. Mesmo atrapalhados, enfiando os pés pelas mãos, seus anti-heróis vão às últimas consequências, propulsados pelo estímulo erótico que tantas vezes nos empurra para a dor na busca da beleza.
“Um instante de beleza é uma alegria para sempre” – diz Domingos à Carolina, citando o emblemático verso de Keats.
Eduardo chega atrasado e lá pelas tantas imita um cachorro. Fernanda inventa uma caricatura – uma atriz-processo que pauta sua vida pelas personagens que faz, e que quando estiver velha planeja montar um Beckett para que ele a ensine a morrer – no palco e na vida. Sophie canta “Surabaya Johnny” em alemão. Carolina lambe os dedos de chocolate. Wagner vai de Hamlet a Jequitibá-Rei. Matheus fala do pai e atribui a ele o fato de ser ator. Maria lê um texto sobre a humildade da inteligência versus a arrogância da burrice. Alexandre, pouco à vontade no próprio papel, vai embora antes do fim.
A trilha sonora é um show à parte. Às vezes retumbante, encobrindo confissões que fariam o filme descambar para a mesmice; outras, cantada à capela pelo coral de atrizes e pela cantora cubana La Lupe, que a certa altura invade a cena e faz metalinguagem:
“Igual que en un escenario/finges tu dolor barato/tu drama no es necesario/ya conozco ese teatro/mintiendo que bien te queda el papel/después de todo parece/que esa es tu forma de ser/Teatro/lo tuyo es puro teatro/falsedad bien ensayada/estudiado simulacro.” (“Puro Teatro”, C. Curet Alonso, 1969)
Fui uma única vez à casa de Domingos em Teresópolis. Era véspera de réveillon e amigos atores iam chegando para juntar-se aos festejos. Na geladeira, só uísque e gelo. Na sala, poucos móveis e um piano de cauda – se não me falha a mobília. Combinou-se de ler “A Alma Boa de Set-Suan” do Brecht na última tarde do ano como uma forma de evoé a Dioniso. Atores relaxam lendo peças. Eu não fui. Devia estar tenso. Atores sempre me deixam tenso. Talvez porque os admire muito, prefiro tê-los em “estudado simulacro” na tela, no palco, à distância.
Assistir a esses nove magníficos tão de perto à distância – Domingos e sua trupe – acendeu uma luz no meio desse túnel trevoso que vamos atravessando. Uma janela para a arte, o amor e a esperança, que, como todos sabem, é a primeira que nasce. No final do filme, passam letreiros garrafais como se gritassem: “Não sofram! Vivam! Vocês são jovens! Bonitos!”
O último Domingos é um brinde à vida e ao ato de estar vivo, representando. Mesmo quem não é ator, tem o seu papel a cumprir – seu enredo, sua trama, seu destino e desfecho. Ele, que gostava de dizer que o tempo é como um rato na sala passando imperceptível, transformou instantes de beleza em alegrias pra sempre em filmes, peças, livros e amores à mancheia.
Tintim.
Texto: Rodrigo Murat é escritor
Imagem: reprodução ( Os 8 magníficos)