Por aí. Em não muitos lugares. Talvez nos fundamentais. Na minha vida, ela começou a entrar em 1988 durante a apresentação da peça “Um Orgasmo Adulto Escapa do Zoológico”, com textos de Dario Fo e Franca Rame interpretados por Denise Stoklos.
Numa das cenas, tocava “O Superman”, faixa do álbum “Big Science” com duração de 8 minutos e 25 segundos. Durante todo esse tempo, sob o canto-fala robotizado da Artista Que Está Por Aí Em Não Muitos Lugares Talvez Nos Fundamentais se ouve uma respiração ofegante. Algo soou estranhamente bizarro, e eu saí do teatro para a loja de discos.
Estou falando de Laurie Anderson, que anos depois eu teria o privilégio de assistir no temporariamente extinto Canecão no Rio de Janeiro. Laurie ao vivo era um show de cores e tecnologia. Muitos telões, muito hipertexto antecipando a era dos tablets e dos smartphones.
Estou falando de 1992, acho. Uma única apresentação dentro de um festival de arte promovido por uma multinacional de cigarros – quando fumo ainda podia patrocinar cultura. Por essa época, Laurie lançava o genial “Home of the Brave” com pelos menos duas canções de peso: “Smoke Rings” e “Language is a Virus”.
“Language is a Virus” é um conceito extraído do livro “The Ticket That Exploded” do autor norte-americano William Burroughs escrito em 1962. Não vou me aventurar a copiar-colar todo o verbete da Wikipédia sob pena de incorrer em preguiça & erro.
Não sei nada do assunto. De Burroughs, que eu me lembre, só li “Cartas do Yage”, co-escrito com Allen Ginsberg. Uma lacuna prescindível não lê-lo. Não se deve adiar um título de gênio como “Naked Lunch”, que David Cronemberg levou para as telas em 1991. No Brasil, chamou-se “Mistérios e Paixões”.
Talvez ninguém saísse de casa para assistir a um “Almoço Nu” – a não ser que no lugar de Judy Davies comportada servissem uma Demi Moore desvestida.
Dizer que Laurie é uma mulher à frente do seu tempo é embicar o artigo num ramerrão daqueles; condensar todo um discurso num lugar-comum que não quer dizer mais quase nada por excesso de uso e desgaste.
Talvez seja mais inovador pensar que Laurie e todas as mulheres, homens e neutros a quem consideramos à frente de seus tempos estejam, na verdade, na retaguarda de tudo iluminando o breu com seus canhões de luz e devolvendo o mundo ao mundo1.
Mas que a letra de “Language is a Virus” antecipa a era das selfies, antecipa:
“Eu tive um sonho: uma ilha de cujo mar brotava uma rosa/Todos na ilha eram pessoas saídas da TV/A vista era incrivelmente bela/Mas ninguém a via/Pois todos estavam ocupados em dizer olhem para mim.”
Laurie participou do disco de Marisa Monte “Cor de Rosa e Carvão” na faixa “Enquanto Isso”, de Marisa e Nando Reis. Laurie verte a letra para o inglês, que, a certo trecho, diz: “Enquanto isso, anoitece em certas regiões/E se pudéssemos ter a velocidade para ver tudo/Assistiríamos tudo.” Tempo e simultaneidade: não à-toa Marisa lembrou-se de Laurie.
Na faixa “Born, Never Asked”, do “Big Science”, Laurie diz:
“Era um quarto grande/Com muitas pessoas/De todos os tipos/Todos haviam chegado mais ou menos à mesma hora/E todos se faziam a mesma pergunta: o que há por trás da cortina?/Você nasceu/Então, você é livre.”
Laurie foi também casada com Lou Reed e dirigiu um filme a que eu assisti no cinema: “Coração de Cão”. Lembro pouco, acho que é um documentário sobre seu cachorro. Fucemos no streaming.
São muitas Lauries – todas dando na mesma. Vale a pena conhecê-la: ela está por aí, dispersa, ausente, altamente concentrada.
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1 A mesma coisa dita com outras palavras para tirar o clichê de sua zona de conforto.
Rodrigo Murat é escritor
Imagem: Reprodução
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