Até outro dia mesmo, Otto Lara Resende era para mim pouco mais do que o título de uma peça de teatro – “Otto Lara Resende ou Bonitinha mas Ordinária”, escrita por Nelson Rodrigues em 1961.
Logo na primeira cena, dá-se o seguinte diálogo:
EDGARD – Você conhece o Otto? O Otto Lara Resende?
PEIXOTO – Um que é ourives?
EDGARD – Ourives? Onde? O Otto escreve. O Otto! O mineiro, jornalista. Tem um livro. Não lembro o nome. Um livro!
PEIXOTO – Não conheço, mas. Bola pra fora!
EDGARD – O Otto é de arder! É de lascar! E o Otto disse uma que eu considero o fino! O fino! Disse. Ouve essa que é. Disse: “O mineiro só é solidário no câncer”. Que tal?
Pois esta frase enigmática que, segundo Nelson, é do Otto, transforma-se no leitmotiv da peça, sendo repetida diversas vezes ao longo dos três atos, como uma moral intercalada à tragédia na qual estão imersos os principais personagens.
Em “O Anjo Pornográfico”, biografia de Nelson escrita por Ruy Castro, lê-se à página 325: “Na marquise do Teatro Maison de France, na avenida Presidente Antonio Carlos, Rio de Janeiro, piscava o título da nova peça de Nelson: “Otto Lara Resende ou BONITINHA MAS ORDINÁRIA”. Seu nome por extenso, como num cartão de visitas, vinha em letras menores, mas, para desespero de Otto, era visível do mesmo jeito. E acoplado àquela coisa da bonitinha, mas ordinária. O que iriam pensar? Que a bonitinha, mas ordinária era ele! (…) Na verdade, ser o título da peça (e de uma peça como aquela) deixou o Otto profundamente irritado. Tanto que não foi ver o espetáculo. E não era por falta de tempo, porque ele ficou cinco meses em cartaz, longos como cinco séculos. Nelson mobilizou todos os amigos, não se conformava com que ele não visse. (…) Não ir ao teatro era a única vingança ao alcance de Otto. Porque de resto, não podia fazer nada, nem reclamar. Descobrira há muito tempo que, quando se tratava de qualquer coisa que o Nelson escrevesse a respeito de alguém, se esse alguém não gostasse, devia ficar quieto. `Se reclamar, é pior. Aí é que ele encarna mesmo.”, dizia Otto.”
Pois Otto Lara Resende fez 100 anos no dia 1 de maio e, embora não esteja mais fisicamente entre nós desde 28 de dezembro de 1992, sua obra continua a iluminar, sorrateira, os escaninhos sombrios do mundo.
O Otto frasista é impagável e recorro a algumas dessas pérolas como forma de homenagem. (Decore a sua e espalhe-a por aí.)
“Às vezes me sinto como alguém que esqueceu alguma coisa em algum lugar. Não sei que coisa, que lugar. Nem sei que alguém.”
“Fazer o bem é uma racionalização? Quase sempre é.”
“Só é grande o que sai de si, o que se sacrifica, se mata pelos outros. O egoísmo é um brejo.”
“Sou pessimista sobre o homem: saco de esterco ambulante, com direito a florir. Alguns florescem.”
“Viver é fácil, conviver é que é difícil.”
“Depois dos 50, a vida precisa ser anestésico.”
“Não quero me desarrumar, sobretudo por dentro.”
“Tudo que me impõe respeito me dá vontade de respeitar.”
“Gostaria de saber uma coisa, uma só, mas muito bem, ser a maior autoridade do mundo em lagartixa, uma coisa assim.”
“Quero ser ignorante, inocente”.
“Estamos presos sempre: no útero, no berço, no quarto, na sala de aula, na casa, no casal, no caixão, na sepultura.”
“Não tenho dúvida nenhuma de que somos seres destinados a voar e, exatamente por isso, não temos asas.”
“Nunca tive sede pra valer. Mato-a logo.”
“Deus é humorista.”
“Não será isto que leva a gente a escrever, a compor música, a dançar, a cantar, à arte em suma? A compulsão de ser interessante.”
“Não vale a pena chorar sobre o leite derramado. Não vale a pena chorar. Alguém jamais chorou por valer a pena? O homem é um animal gratuito.”
“Hoje, minha coluna social favorita é a fúnebre. É onde tenho mais conhecidos. E é a única em que entram todos, entram grã-finos e entra a periferia, entra a caravana e entram os cães. A morte é o clube mais aberto do mundo.”
“Ando pouco disposto a descer às galerias do passado, numa arqueologia que, por menos dolorosa ou emocional que seja, sempre desarruma a gente por dentro. E depois toma tempo pra arrumar de novo.”
“Por mais que o homem conte de si mesmo, ele é sobretudo o seu insondável segredo. Como a reserva de ar pulmonar, que não se expira.”
“E não vale a pena escrever se o que escrevemos não circulou antes no nosso sangue.”
Não conheci o Otto. Acho que nem pessoalmente. Perdi-o. Drummond eu via passar na rua. Adoraria lembrar como era. Rever a cena como um filme. Ele me olhava? Encarava os transeuntes ou seguia cabisbaixo e concentrado, como que esquecido de si e da fama que carregava como um caramujo? E eu? Demonstrava o espanto diante do poeta ou fingia distração? Fernando Sabino estava sempre no calçadão de Ipanema em seus passos largos, como que orgulhoso dos setenta anos de vida bem nutrida, e hoje, que ele não está mais aqui, eu moro no seu prédio. Passo pela porta de seu apartamento no sétimo andar e peço a benção.
Millôr Fernandes corria à beira-mar de sunga e camiseta também na praia de Ipanema. Depois, com o passar dos anos, passou a caminhar, com o mesmo figurino, só que mais encurvado pelo tempo e pela gravidade. Teresa, que trabalhou quase cinquenta anos com ele nos serviços domésticos do estúdio que ele mantinha numa pequena cobertura a poucos prédios do meu – e avistável para a cobertura-jardim suspenso de Rubem Braga antes da subida dos espigões – cresceu na casa de minha mãe como uma espécie de agregada quando o Arpoador e as ruas de seu entorno não eram mais que um arrabalde. Na época em que se dizia “vou à cidade” quando se queria falar do Centro. Ipanema não era “a cidade”. Era uma espécie de mato com praia e lagoa.
Apesar deste elo, nunca estive próximo ao Millôr, e na única vez em que fui à sua cobertura-escritório, ele lá não estava. Aí, fui morar um tempo no Leme, na outra ponta de Copacabana, e passei a ver Ferreira Gullar nas esquinas turbulentas do Posto 2 ali pela altura do Copacabana Palace. O poeta em sua solidão urbana. Mas o Otto, se eu vi, não sei. E mesmo em páginas – pouca coisa dele li. Agora, animado pelo centenário, comprei o “Boca do Inferno”, livro de contos. Já dei uma folheada, mas não consegui me fixar em nenhuma história. Todas sobre crianças mineiras, a um só tempo, ingênuas e maliciosas. Quem sabe, um dia.
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Otto lido de trás pra frente dá no mesmo – nome palíndromo. E pelo pouco que hoje dele sei, depois de devorar o caderno de textos e entrevistas lançado pelo Instituto Moreira Salles em 2002 – “Três Ottos” – e da onde tirei as frases aqui transcritas, acho que ele foi mesmo esse espelho fiel de si – como todos nós, aliás – vivendo às custas de suas próprias alegrias e dores. Poço cristalino de contradição – como convém aos sábios que reconhecem a própria fratura interior – Otto,
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Resolvi deixar o artigo assim, suspenso, inacabado, para ser completado de quantas maneiras possíveis como numa imitação a Clarice, que, amante em potencial das vírgulas, fez com que “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres” assim começasse:
“, estando tão ocupada, viera das compras de casa que a empregada fizera às pressas…”
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Há um ótimo vídeo no YouTube de Otto Lara Resende entrevistando Nelson Rodrigues em 1977. É hilário. Nem o mais criativo roteirista do Porta dos Fundos conseguiria alcançar metade da elevação espiritual e do deboche sofisticado desses dois rabugentos fundamentais.
Rodrigo Murat é escritor
Imagem: Instituto Moreira Salles
Imagem:https://cronicabrasileira.org.br/autores/5895/otto-lara-resende
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