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PORQUE ERA UM SONHADOR

Folclore

PORQUE ERA UM SONHADOR

A Música, o Luzeiro e o Tempo – por Mirianês Zabot

Em 22 de agosto comemoramos o Dia do Folclore. É imprescindível para um país conhecer as suas raízes e tradições. A cultura popular brasileira é a nossa digital e também nossa bússola, pois observando o passado, poderemos edificar um belo futuro. Cabe aos folcloristas, pesquisar e registrar o conjunto de saberes tradicionais de seu povo, que são as lendas, anedotas, crenças, músicas, danças, brincadeiras, vestuários e comidas típicas.

Alguns dos mais importantes estudiosos do nosso folclore foram: o potiguar Luís da Câmara Cascudo, o paulistano Mário de Andrade e os gaúchos Paixão Côrtes e Barbosa Lessa, juntos eles nos deixaram um vasto acervo, fundamental para manter viva a cultura popular de diversas regiões do Brasil.

Importantes escritores buscam no folclore a base para criar suas obras, entre eles, Monteiro Lobato, criador do “Sítio do Picapau Amarelo”, coleção de livros lançados a partir de 1920. Agraciada pela UNESCO, com o prêmio de melhor programa infantil, a série de fantasia “Sítio do Picapau Amarelo”, produzida pela TV Globo de 1977 até 1986, é uma adaptação da obra de Monteiro Lobato, feita por Benedito Rui Barbosa e Wilson Rocha, sob a direção de Geraldo Casé. Aliás, antes de estrear na Globo, outras versões da fábula já haviam sido exibidas no cinema e na televisão, – pela Rede Tupi, TV Cultura e Rede Bandeirantes -, nas década de 50 e 60.

A trilha sonora e direção musical da primeira temporada do “Sítio do Picapau Amarelo”, ficou sob as competentes mãos de Dori Caymmi, que também assina, ao lado do diretor de produção Guto Graça Mello, os criativos arranjos, – que fazem referência a tradicionais gêneros da música brasileira e ao mesmo tempo os atualizam -. A direção de
estúdio foi feita por Dori e João Carlos Botezelli (Pelão).

Um time de interpretes e compositores geniais foi escalado para a empreitada de criar canções, exclusivamente para os personagens do seriado. Cada artista adotaria um desses personagens para musicar. Mas Gilberto Gil tinha outros planos… Ao receber o convite de Dori, foi logo reivindicando: “Está todo mundo fazendo música para um personagem, eu quero logo é fazer uma música que fale de todos eles”. E assim nasceu o icônico tema de abertura:

“Boneca de pano é gente
Sabugo de milho é gente
O sol nascente é tão belo
Sítio do Picapau Amarelo”
Eis uma trilha sonora que encanta adultos e crianças!

Compositores, arranjadores e interpretes, souberam captar com perfeição a essência dos personagens Lobatianos. A menina Narizinho foi embalada pela doce e límpida voz de Lucinha Lins, na delicada canção de Ivan Lins e Vitor Martins, que conta com piano do próprio Ivan. Já o sonhador Pedrinho, para arquitetar seus grandes planos, ganhou música de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro, com interpretação etérea do grupo Aquarius.

O sobrenatural é tema para a música do preto velho, Tio Barnabé. Com percussividade africana, característica dos terreiros, a composição de Marlui Miranda, Jards Macalé e Xico Chaves, fala sobre orixás e lendas brasileiras, pelas vozes de Marlui e Jards. A acolhedora Tia Nastácia é acompanhada pela suave cantiga do mestre, Dorival Caymmi. Dona Benta, – que com seu jeito carinhoso, nos lembra da importância de ler e de contar histórias -, recebeu uma sensível canção, também de Ivan Lins e Vitor Martins, através do canto de Zé Luiz Mazziotti.

Personagens folclóricos como o peralta Saci-Pererê e a feiticeira jacaré Cuca, fazem parte da trama. O Saci é perfeitamente representado pela música jocosa e saltitante de Guto Graça Melo, com arranjo vocal do Papo de Anjo. O mesmo grupo também interpreta “Ploquet Pluft Nhoque (Jaboticaba)”, de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro. O Sítio, ainda recebe esporádicas visitas de outros seres do imaginário popular, como o Curupira, a Iara, e os assombrosos: Lobisomem e Mula-sem-cabeça. Até alguns mitos e heróis estrangeiros eventualmente dão ar da graça.

Nessa narrativa lúdica, objetos inanimados ganham vida. A serelepe boneca de pano, Emília, – considerada como um alter ego de Lobato -, teve suas birras e espertezas conduzidas pelo pulsante xote-baião, concebido e interpretado por Sérgio Ricardo. Visconde de Sabugosa é um sabugo de milho com conhecimentos enciclopédicos e ares de doutor, cujas aventuras são embaladas por um excelente samba de João Bosco e Aldir Blanc, contando com a interpretação e a levada singular do violão de Bosco.

A série apresenta fascinantes animais falantes, como o porco Rabico, o carteiro Jabuti e Quindim, – um rinoceronte africano que, após fugir do circo onde sofria maus tratos, foi-se refugiar no Sítio do Picapau Amarelo -, eles porém, só foram ter músicas próprias com o lançamento do segundo LP do seriado.

Também estão no elenco insetos, pássaros e peixes, – esses últimos, os habitantes do Reino das Águas Claras -, ganharam o tema “Peixe”, de Caetano Veloso, com arranjo moderno e minimalista interpretado pelos Doces Bárbaros.

Completam o repertório do primeiro LP da série, o baião “Arraial dos Tucanos”, de Geraldo Azevedo e Carlos Fernando, pelo qual Ronaldo Malta canta os anseios dos moradores do vilarejo, onde o pessoal do Sítio faz suas compras.O envolvente tema enaltece os que ganham seu sustendo pelos frutos da terra, desejando apenas viver em paz.

“Passaredo” é uma ode à natureza, em um grandioso arranjo vocal do MPB4. Enquanto finalizava essa letra, Chico Buarque de Hollanda, fez incansáveis ligações para um amigo botânico, perguntando: será que você não teria aí mais uns nomes de passarinhos para me informar? Resultado: quase 40 espécies foram aninhadas na sofisticada melodia de Francis Hime.

Além da beleza da música original da série, a apurada trilha fundo também merece destaque. No decorrer dos episódios, aparecem bonitos temas do cancioneiro, em versões instrumentais, é o caso do clássico “Tristeza do Jeca”, de Agenildo de Oliveira, – música do personagem Jeca -.

Vale destacar, a riqueza do vocabulário utilizado na narrativa. Apresentando o que há de mais bonito, poético e genuíno na cultura brasileira, estão: o caipira Jeca com seu fraseado matuto e o Tio Barnabé com sua sabedoria popular. Já o paquiderme Quindim, além de falar seu idioma pátrio, – o inglês -, ainda faz um elegante uso da língua portuguesa. Com sabedoria, o Visconde serve-se de rebuscados termos científicos, frutos de suas incansáveis pesquisas literárias.

Por um lado, a obra de Monteiro Lobato contribuiu enormemente para divulgar e valorizar o folclore brasileiro, por outro lado, reverberou alguns estereótipos da época, como o racismo e preguiça do caipira. Nada que uma edição, feita com olhar delicado e gentil, não resolva, uma vez que essas abordagens acontecem em cenas pontuais.

Demostrando que a história segue encantando sucessivas gerações, está previsto para 2022 o lançamento de um filme live-action, intitulado “De Volta ao Sítio do Picapau Amarelo”. Além disso, outras produções da série seguem em exibição, pela Globo e pelo Cartoon Network.

A música que nos é apresentada quando somos crianças, impacta nossa formação como cidadãos. São valores que levamos conosco por toda a vida. O estimulo sonoro que recebemos na infância, é nossa referência para lidar com os problemas que a vida nos apresenta, – se ouvimos músicas edificantes, estaremos predispostos a ter reações de
maior empatia -. Além do desenvolvimento intelectual e moral, a música potencializa, nas crianças, as habilidades de aprendizagem e tem impacto no desenvolvimento físico e cognitivo. A música é, por fim, um veículo para aflorar emoções contidas.

Por Mirianês Zabot
* Texto publicado em 16/08/20 na coluna “Ouvimos”, do Cine.RG

[ Site: www.mirianeszabot.com.br | Instagram: @mirianeszabot ] Facebook: Mirianês ZabotOficial

Confira a música “Sítio do Picapau Amarelo”, na voz de MIRIANÊS ZABOT: https://youtu.be/mlaTs-Y-Jyo

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