A Música, o Luzeiro e o Tempo – por Mirianês Zabot
As vésperas do Dia Internacional do Forró, 13 de dezembro, data do aniversário do Rei do Baião Luiz Gonzaga, – artista que com sua voz forte e sua sanfona magnífica, traduziu para o mundo a alma nordestina e, porque não dizer, a essência do povo brasileiro -, venho falar de uma música em especial, cujo autor Antônio Barros, com mais de 700 composições gravadas, figura entre os mais prolíficos do gênero musical apresentado por Gonzagão: o forró.
Antônio Barros, cantor e compositor paraibano, que em breve, no dia 11 de março de 2020, completará 90 anos de idade, é autor de xotes, baiões e xaxados imortalizados nas vozes de grandes artistas como Jackson do Pandeiro, Elba Ramalho, Marinês, Trio Nordestino, Alcione, MPB-4, Ney Matogrosso e Fagner, até o próprio Rei do Baião rendeu-se a grandeza da obra de Antônio Barros. Entre os maiores sucessos do compositor estão “Bate Coração” (com Cecéu), “Procurando tu” (com J. Luna) e “Homem com H”, música que teve, entre outras gravações, a icônica interpretação de Ney Matogrosso. É justamente sobre “Homem com H” que vou discorrer nessa edição da Coluna “A música, o luzeiro e o tempo”, uma vez que o tema da edição desse mês da Revista Redação de Beleza está debatendo o conceito de homem do século XXI, seus desafios e as diferentes formas de expressar sua masculinidade.
Em 1981 a música “Homem com H”, composta anos antes por Antônio Barros, inspirada em uma cena da novela “O Bem Amado”, da TV Globo, – na qual um dos personagens tenta afirmar sua questionável valentia, dizendo: “Eu nunca vi rastro de cobra nem couro de lobisomem, eu sou é homem.”, frase que se tornariam parte da letra dessa música -, volta à baila com grande sucesso, na voz de Ney Matogrosso, como faixa 5 do seu LP homônimo, lançado pela gravadora WEA, o 9º disco da carreira do cantor, sendo que os dois primeiros são da discografia do Secos & Molhados, grupo que Ney formara ao lado de Gerson Conrad e João Ricardo. No mesmo ano a música recebeu o Troféu Imprensa, do canal SBT, na categoria de Melhor Música do Ano.
A letra de “Homem com H” fala de forma jocosa sobre a necessidade, imposta ao homem pela sociedade, de que ele seja o machão, conforme aparece, em expressão de origem nordestina, na seguinte frase da música: “Cabra macho pra danar”. Esse ponto de vista é expressado pela própria mãe do personagem retratado na canção, completando o pensamento ela diz: “Ai meu Deus como eu queria que essa cabra fosse homem”. Pelo estereótipo de masculinidade, arraigado ainda na infância de meninos e meninas, ou até mesmo durante a gestação, como menciona a música, espera-se de um homem ser corajoso e capaz de enfrentar qualquer “valente”, respondendo às ameaças sem titubear, sejam elas desse mundo ou do outro, visto que ele não deveria ter sequer medo de lobisomem. Almeja-se um tipo de “homem das cavernas”, habilidoso em defender sua família, fazendo uso da luta e da truculência.
“Nunca vi rastro de cobra
Nem couro de lobisomem
Se correr o bicho pega
Se ficar o bicho come
Porque eu sou é home
Porque eu sou é home
Menino eu sou é home
Menino eu sou é home
E como sou
Quando eu estava pra nascer
De vez em quando eu ouvia
Eu ouvia a mãe dizer
Ai meu Deus como eu queria
Que essa cabra fosse home
Cabra macho pra danar
Ah! Mamãe aqui estou eu
Mamãe aqui estou eu
Sou homem com H
E como sou
Cobra! Home
Pega! Come
Porque eu sou é home
Porque eu sou é home
Menina eu sou é home
Menina eu sou é home
Eu sou homem com H
E com H sou muito home
Se você quer duvidar
Olhe bem pelo meu nome
Já tô quase namorando
Namorando pra casar
Ah! Maria diz que eu sou
Maria diz que eu sou
Sou homem com H
E como sou”
Homem com H (Antônio Barros)
Fica subentendido que aquele homem que não proceder segundo essas diretrizes, seria um covarde, um medroso incapaz de enfrentar “como um homem” os perigos que venham a se apresentar.
Na voz de Ney Matogrosso, a música “Homem com H” ganha uma dimensão interessantíssima, porque sua imagem, desde a época do grupo Secos & Molhados, apresentava um ser híbrido, que não era nem totalmente homem, nem totalmente mulher, nem inteiramente um bicho. Os figurinos e maquiagens eram descomprometidos com a masculinidade tradicional. Ele também não tinha sequer, a pretensão de ser uma mulher, era uma figura andrógena (termo novo para a época). Definitivamente ele não era, e não é, um “Homem com H”, uma vez que não é machista e é alguém que opta pela empatia, respeito e sutileza no trato com as pessoas.
Aliado a isso, havia também uma forte expressão corporal nas apresentações de Ney Matogrosso. Nas palavras do próprio Ney: “Só quem podia se expressar fisicamente eram as mulheres, homens não podiam. Eu vi que eu podia me expressar fisicamente…”. Tal postura causou um choque nas pessoas mais conservadoras, “… Embora eu ache que as minhas apresentações não era sexualidades, eu usava minha libido como uma arma, não era para ganhar ninguém, não era sedutor, era agressivo até, porque eu tinha de ser. Já que algumas vezes tentaram me agredir e eu tive que encarrar cinco mil pessoas me xingando, aí eu parei e fiz uma pose, continuaram me xingando…”, nisso ele respondeu aos xingamentos da plateia posicionando-se firmemente um palavrão, bem mais contundente e definitivo. “… Aí começaram a me aplaudir. Entendi nesse momento que eu não podia ter medo e, aprendi para o resto da minha vida, que não podemos ter medo.”
Há uma forte e irônica critica à sociedade na figura artística de Ney Matogrosso. Algo que questiona a hipocrisia e os padrões preestabelecidos, emburrecidos e embrutecidos. Ele controverte a cegueira intelectual da manada, mostrando que existe desamor e pouca compreensão entre as pessoas. O bonito disso, é que essa provocação se apresenta sem contundência, sem apelações desnecessárias e sem ofensas. É a arte sendo disponibilizada a população, com alto nível de qualidade artista e musical e, ao mesmo tempo, cumprindo seu grande papel que é instigar pessoas a pensar e chegar as suas próprias conclusões sobre a proposta artística que lhes é apresentada. Joga luz para que as pessoas enxerguem além, sem ditar qual o ponto de vista elas devem ter sobre a vida ou sobre o mundo.
A título de curiosidade, Ney só foi subir no palco sem os figurinos e maquiagens exóticas, usando apenas um terno branco e sem dançar, mais tarde em 1987, no show “Pescador de Pérolas” por, segundo o próprio artista, “uma necessidade pessoal de se afirmar apenas como cantor”. O fato, é que a intensidade, presença e sensibilidade interpretativa desse grande artista é muito presente, com ou sem figurinos, com ou sem maquiagens.
A reflexão deixada por “Homem com H”, através de seu principal interprete, Ney Matogrosso, é que existem outras formas de expressar a masculinidade. São aquelas onde o homem busca ser mais sensível aos sentimentos dos outros, percebendo as sutilezas das relações humanas. Essa conduta melhora a empatia, que é a capacidade de colocar-se no lugar do outro indivíduo, sentindo assim suas dores e alegrias. É importante lembrar que a expressão da força de um homem não está necessariamente na contundência e nem no “falar grosso”, e que ele, tão pouco precisa fazer “coisas de homem” para se provar como tal. O desafio do homem em 1981 e agora no século XXI, continua sendo o de aceitar-se como ele verdadeiramente é, libertando-se de ideias preestabelecidos e percebendo o quanto é prejudicial, para homens e mulheres, ser aquilo que a sociedade machista exige. É generoso e benéfico pra todo mundo, fazer esse exercício de desconstrução desses padrões alimentados geração após geração, reforçados por pais, professores, amigos e sociedade como um todo, ditando o que é “coisa masculina” e o que é “coisa feminina”.
Porque pensar por si próprio é a verdadeira expressão de liberdade.
Por Mirianês Zabot
* Texto publicado em 08/12/19 na coluna “A Música, o Luzeiro e o Tempo”, da Revista Redação de Beleza
* Para saber mais sobre Luiz Gonzaga, Antônio Barros e outros importantes nomes da música brasileira, recomendo a leitura dos textos no Blog do Assis Ângelo (jornalista, biógrafo de Luiz Gonzaga e estudioso da cultura popular).
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