QUEM PAGA A CONTA?
Ruben Ösltlund é, possivelmente, o homem mais perspicaz do cinema hoje. A frase – de efeito, claro – escreveu-se em mim depois da sessão do filme “Triângulo da Tristeza”, que ganhou a Palma de Ouro no último festival de Cannes. Östlund, sueco, é o mesmo que dirigiu “Força Maior” e “The Square”. Através do humor e de uma percepção aguçada do comportamento humano, Östlund constrói suas histórias como quem desmonta brinquedos que expõem as entranhas da sociedade para que possamos entendê-la.
No caso de “Força Maior”, ele parte de uma relação amorosa que sofre um abalo sísmico-psicológico como decorrência de uma avalanche de neve. Em “The Square”, temos um homem lindo – um yuppie, como se dizia no século passado, um dândi adaptado à era tecnológica – às voltas com toda sorte de desestabilizações: de uma pedinte de rua que o chantageia com um pedido excêntrico à uma jornalista sedutora interessada em rebaixá-lo de macho alfa a beta.
“Triângulo da Tristeza” começa com uma longa sequência em que a posição do macho alfa também é questionada a partir da discussão de um casal fashion num restaurante discutindo quem deve pagar a conta – já que ela ganha três vezes mais que ele como profissional da moda e ele tenta posar como filhote desgarrado do rebanho patriarcal absoluto querendo relativizar a coisa. O embate chega ao paroxismo, sendo analisado em todos os seus ângulos – papel da boa dramaturgia.
No segundo ato do filme, temos uma viagem de cruzeiro com a nata da elite empanturrando-se de ostra, ostentação e tédio. Há um simpático e aparentemente inofensivo casal de velhinhos que lá pelas tantas revela ser proprietário de uma empresa de artefatos bélicos. E o casal fashion agora refestela-se em espreguiçadeiras brancas à beira da piscina no convés produzindo conteúdo para rede social. Ela é modelo-influencer-alérgica-a-glúten e ele é modelo-louro-robusto-e-pau-de-selfie-da-namorada.
O terceiro ato não dá pra descrever porque aí seria spoiler puro. Posso dizer, sem estragar, que há uma ilha paradisíaca, alguns pacotes de biscoito e meia dúzia de náufragos tentando se reinventar. Entra uma personagem – Abigail – que é, provavelmente, uma das dez mais interessantes da história do cinema – outra frase de efeito estimulada por uma obra que me causou ótimo impacto.
Em reportagem publicada no jornal “O Globo” de 17/10/22, o diretor explica o título do filme:
“Triângulo da tristeza é um termo usado na indústria da beleza. Uma amiga encontrou uma cirurgiã plástica numa festa e depois de dar uma olhada para o seu rosto, disse: você tem um triângulo da tristeza bem profundo, referindo-se à ruga entre as sobrancelhas. Na Suécia, chamamos essa marca de ruga de preocupação. É um sinal de que passamos por muitas provações na vida.”
De fato, estamos todos preocupados com quem vai pagar a conta dessa conta que não fecha chamada mundo. Quem? Os grandes industriais do petróleo? Os mega sonegadores de impostos? Os proprietários das vinícolas que forjam trabalho escravo e que, quando flagrados, mantêm-se obtusos? Certo que não. Eles estão muito ocupados para ir ao banco, além de acharem isso uma atitude muito servil para quem cresceu tanto.
A atriz Charbi Dean, que interpreta a mocinha do casal fashion, morreu em agosto de 2022 como decorrência de um acidente de carro sofrido em 2009, que obrigou-a a extrair o baço.
De obra em obra, Ruben Östlund vai se firmando como um dos diretores mais interessantes e fecundos do cinema atual. A se confirmar pelos próximos filmes.
Rodrigo Murat é escritor
Imagem: Divulgação