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RENATO & CAZUZA NOS TEMPOS DO VIDEOCASSETE

RENATO & CAZUZA NOS TEMPOS DO VIDEOCASSETE

Ligo da redação para o telefone fixo residencial:

Alô, eu podia falar com o Renato?

Uma voz acolhedora de mãe, avó ou madrinha responde:

Momentinho que eu vou ver se ele pode atender. Renato, telefone pra você. É do jornal.

Nisso, escuto o timbre rouco-metálico se aproximando do aparelho em meio à sinfonia ao fundo de copos, talheres, campainha, choro de criança. Tudo trivial e distinto do que se espera de um ambiente rock and roll.

Porque o Renato a que eu me refiro é o Manfredini Jr., conhecido em arte por Renato Russo. Eu, repórter-estagiário do JORNAL DO BRASIL, responsável pela coluna “Controle Remoto”, tinha a incumbência de entrevistar famosos para saber de suas relações com o videocassete. Sim, estávamos no paleolítico, Gutemberg inventara a imprensa há quatro séculos, e o papo-quatro-cabeças com Renato sairia no Caderno B de 16/12/1988:

Renato, o que você mais gosta de assistir?

Ah, diversas coisas. Alguns filmes eu até compro, como Submarino Amarelo, dos Beatles. E o Vento Levou, Manhattan, Jules e Jim e A Espada era a Lei, do Walt Disney, que é um dos meus favoritos. Recentemente gravei da TV “Morte em Veneza” e peguei na locadora “Fanny e Alexandre”.

Sou meu próprio líder, ando em círculos.

Renato era simpático e deixava-se levar pelas palavras em raciocínios articulados. Tanto que, quando precisei colher opiniões sobre o imbróglio envolvendo o escritor Salman Rushdie condenado à morte por conta de seu livro “Versos Satânicos” – na redação, durante uma semana, não se falou de outra coisa – não tive dúvida:

Alô, eu podia falar com o Renato?

Renato então veio ao telefone e, inflamado pelo tema Fé x Liberdade de Expressão, disparou sua metralhadora giratória por quase meia hora. Tive de arranjar um jeito de estancá-la, pois precisava ligar ainda para Fernanda Torres, Norma Bengell, Mauro Rasi, Geraldo Carneiro, e quem mais estivesse no meu caderninho.

Para a mesma seção “Controle Remoto” tentei Cazuza:

Alô, eu podia falar com o Cazuza?

Caju veio ao telefone mascando uma maçã:

Pra que buscar o paraíso/se até o poeta fecha o livro/sente o perfume de uma flor no lixo/e fuxica.

Cazuza, o que você mais gosta de assistir?

Tanto faz, rapaz. Comigo não tem disso. Eu vejo qualquer coisa.

Qual a marca do seu videocassete?

Putz… agora você me pegou.

E que filmes você assistiu recentemente?

Não lembro. Tem uns aí que uns amigos me trazem.

Ao contrário de Renato, a conversa com Cazuza não fluía. Agradeci o contato, desliguei sem dizer “te adoro”, e fui para o computador tentar transformar o fiapo de entrevista em algo publicável. Enviei ao editor – Artur Xexéo – que leu e disse:

Não dá. Tenta outro.

As possibilidades de felicidade são egoístas, meu amor.

Cazuza eu vi pessoalmente algumas vezes – até por sermos de bairros vizinhos e frequentarmos a mesma praia. Renato, na época dos telefonemas, morava na Ilha do Governador, ou passava temporadas lá revendo a família. Nos últimos anos de vida se mudou para Ipanema. Cheguei a vê-lo num final de madrugada em pé numa esquina fazendo jus ao título “O Trovador Solitário”.

Sou uma cópia do que faço.

Uma noite eu estava no Baixo Gávea e Cazuza sentou na minha mesa. Tinha rolado uma noite de autógrafos ali perto na extinta livraria Bookmakers – livro de Tavinho Paes ou Bernardo Vilhena, não me lembro ao certo – e poetas belos bêbados cometas/sempre em bandos de quinze ou de vinte/prevendo o futuro que não chega circulavam pela área em busca de mais uma dose/a noite nunca tem fim/por que a gente é assim? Fui com um amigo, que por sua vez encontrou outro, que por sua vez conhecia o Cazuza, e por conta desses três graus de separação, eu me vi sentado ao lado do meu rock star predileto.

Pode seguir a tua estrela/o teu brinquedo de star/fantasiando em segredo aonde quer chegar.

Foi como se um canhão de mil watts tivesse sido direcionado à mesa em que eu estava – no largo da praça, do lado de fora do bar. Garçons, clientes, pedestres, mendigos, flanelinhas, todos olhando embevecidos para o Astro incandescente e sua trinca de Satélites. Eu – Satélite 3 – e meu amigo – Satélite 2 – ficamos mudos extáticos por um tempo, depois seguimos conversando como se nada estivesse acontecendo; como se ter Cazuza a um palmo de distância fosse a coisa mais corriqueira. Até que me caiu a ficha: Cazuza a um palmo de distância e eu não vou fazer nada? Resolvi pagar de íntimo e disse:

E aí, como é que foi a turnê do Nordeste?

Soou estranho o papo reto porque nem apresentados havíamos sido. Talvez por isso, ou porque ele estivesse meio bêbado, ou ocupado com segredos de liquidificador, fui solenemente ignorado.

Talvez você caia na minha rede um dia cheia de cacos de vidro.

Cazuza ficou uns dez minutos conosco, pediu um conhaque, levantou, passeou por outras mesas, voltou, tomou um trago, fez um cheque e foi embora acompanhado de seu anjo-da-guarda – um grandão simpático que fez questão de apertar a mão de cada um de nós em nome do Exagerado.

Adoro um amor inventado.

Olhei o cheque. Lá estava seu nome impresso – Agenor de Miranda Araújo Neto – e, sobre ele, a rubrica-autógrafo. Pensei em pegar pra mim e para o meu museu das grandes novidades, mas tive medo do ridículo e deixei pra lá.

Viver é deixar pra lá.

Alguns meses depois Cazuza iria embora de novo – dessa vez da vida. Eu estava em Visconde de Mauá, sacolejando num ônibus por uma estrada de terra, quando ouvi dizer:

Cazuza morreu.

A vida é bela e cruel despida/tão desprevenida e exata que um dia acaba.

Cazuza morreu no ano em que Cássia Eller gravou o seu primeiro disco – 1990. Nele, a música “Que o Deus Venha”, de Frejat, Cazuza e Clarice Lispector:

Sou inquieta, áspera e desesperançada/embora amor dentro de mim eu tenha/só que eu não sei usar amor/às vezes arranha feito farpa/corro perigo/Como toda pessoa que vive/E a única coisa que me espera/É exatamente o inesperado.

Seis anos depois foi o Renato.

Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar que tudo era pra sempre?

Os videocassetes não existem mais, os poetas escapuliram de seus corpos, mas suas obras seguem, firmes e fartas, a um palmo de distância e assoviáveis.

Deixa o copo encher até a borda/que eu quero um dia de sol num copo d´água.

A vida é bem mais perigosa que a morte.

______

As frases em itálico são trechos das canções “A Montanha Mágica” (Renato Russo/Marcelo Bonfá/Dado Villa-Lobos), “Ritual” (Frejat/Cazuza), “Só se for a Dois” (Rogério Meanda/Cazuza), “Nós” (Frejat/Cazuza), “Por que a gente é assim?” (Frejat/Cazuza), “Bete Balanço” (Frejat/Cazuza), “Codinome Beija-Flor” (Cazuza/Arias/Ezequiel Neves), “Quarta-Feira” (Zé Luiz/Cazuza), ““Exagerado” (Cazuza/Ezequiel Neves/Leoni), “Blues da Piedade” (Frejat/Cazuza), “Que o Deus Venha” (Frejat/Cazuza/Clarice Lispector) “Por Enquanto” (Renato Russo), Baby Suporte” (Ezequiel Neves/Cazuza).

Texto: Rodrigo Murat é Escritor

Imagem:https://www.socialistamorena.com.br/cinema-brasileiro-encaretou-cazuza-e-renato-russo/

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