RESPOSTA AO ÓDIO
RESPOSTA AO ÓDIO – Por Rodrigo Murat
– E se a gente sentisse pena ao invés de ódio?
– Como assim?
– Se a gente invertesse o sinal dos sentimentos: negativo por positivo.
– E você acha sentir pena um sinal positivo?
– Claro. Se a gente se apieda de alguém é porque conseguiu entender, conseguiu sair da própria casca e andar até o outro. Empatia que chama.
– Muito obrigado. Eu não estou interessado em andar até lugar nenhum. Foram anos construindo a minha casca. Eu sei o que se passa lá fora. Eu li.
– Ah! Você leu!
– Sim, eu li. Nos livros certos há ódio suficiente catalogado. Pelo menos desde o primeiro degrau da Era Cristã um copo de cólera é derramado.
– E esse ódio que você extraiu como um óleo de tanta leitura besuntada está te ajudando a manter em dia a tua casca?
– Eu não odeio porque eu quero. Por mim, eu passava o dia cantando. Eu odeio porque existe o ódio, e se a gente não constrói a nossa casca, somos devorados. O meu ódio é em resposta ao ódio que há lá fora, no mundo.
– Sei. Quer dizer que se não existisse o ódio lá de fora, você não produziria o seu. Se o mundo não fosse mau, você seria bom.
– Seria, não. Eu sou bom. Eu rezo. Eu tenho fé.
– Fé? Mas então você não deveria crer nos homens? Eles não são feitos à imagem e semelhança Daquele que sustenta a sua fé?
– Deveria. O problema é que existe o livre-arbítrio, e a maioria arbitra errado. Arbitra em favor dos próprios interesses. Eles também não andam até ninguém. Eles também não saem de si.
– Nós contra eles?
– Eles contra nós!
– E você nunca cogitou a hipótese de que esse ódio que você diz vir de fora pode na verdade estar sendo produzido originalmente dentro de você, na tua fábrica de afetos?
– Fábrica de afetos! Coisa mais afetada! Claro que não. O ódio que eu produzo na minha (faz aspas com os dedos) “fábrica de afetos” é em resposta ao ódio produzido há pelo menos dois mil anos aí fora. Eu não vou responder ao ódio de dois mil anos com florzinha. Não é com florzinha que se muda o mundo.
– Ah! Você quer mudar o mundo. Mudar com ódio.
– Não. Eu quero avisar ao mundo que o ódio existe e que eu estou ciente disso.
– E você não acha que essa casca construída, como você disse, à base da leitura dos livros certos, não pode estar te impedindo de sair de vez em quando pra dar um passeio? Lá fora é tão fresco, arejado. Se a gente fica o tempo todo dentro, acaba ingerindo mofo.
– Que papinho, hein? Você tá querendo o que, salvar a humanidade com essa sua retórica sofista? Virou protetor dos fracos que se fazem de oprimidos para poder oprimir ao contrário? (faz aspas com os dedos) “Meu corpo, minhas
regras?”, “Vidas X importam”, e todo esse blábláblá importado?
– Não. Estou dizendo tudo isso pra ver se eu me convenço. Pra ver se eu aprendo com as palavras. Eu também acho uma delícia ficar dentro de mim odiando. Os que estão por cima eu cancelo; os que estão por baixo, eu ignoro.
– Exato. É pra isso que existe o ódio: pra gente se vingar daqueles que nos odiaram antes.
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“O Ódio” está em filmes como o de Mathieu Kassovitz (“La Haine”, 1995), em livros, em peças, e também nos corações mais iletrados.Todo discurso que se ergue contra ele é uma tentativa meio ingênua de neutralizá-lo.
Será bom se um dia pudermos ser ingênuos por inteiro vivendo uma vida de honestidades.
Rodrigo Murat é escritor e escreve no blog rodrigomurat.wordpress.com