Compareci, semana passada, a uma Assembleia Geral Extraordinária para a deliberação de dois assuntos urgentes da Sociedade a qual sou filiado: estavam lá meia dúzia de gatos pingados presenciais e outros tantos virtuais naquelas janelinhas de pixel que vão diminuindo à medida que a “sala” vai enchendo, e que às vezes travam e deixam o usuário com a cara borrada ou com o dedo em riste. Dos presenciais, sou o único de máscara. Sim, apesar da pandemia ter extraoficialmente acabado, continuo afeito ao protocolo, e não sei se por conta do longo período de reclusão, ou se por força mesmo de temperamento – temperamentos que vão se temperando en su tinta e nos tornando cada vez mais iguais a nós próprios –, percebo que aprimorei meu olhar arguto para os pequenos trejeitos sociais como se os observasse com lupa.
O cenário é meio que de podcast ou de estúdio de rádio. Há dois microfones com cabos retráteis debruçados sobre a mesa onde estamos, o que torna tudo ainda mais empostado. À minha frente, está uma mulher – que chamarei de Mulher A – e que é a escolhida para presidir a sessão, sentada ao lado de um homem – Homem A – que, apesar de ser figura de proa do negócio, mostra-se subalterno numa posição curvada e de olhar baço. Há outras duas mulheres e um sujeito falando tudo a plenos pulmões com a força dos seus presumíveis trinta anos e como se estivesse com o texto decorado. Eles de fato me dão a impressão de representar o próprio papel, em especial a Mulher A, que oscila com bastante teatralidade entre o simpático e o arrogante.
Aguardamos uma hora entre a primeira e a segunda convocação marcada para as 19h para que a assembleia possa ser considerada válida e, nesse ínterim, vamos conversando sobre assuntos outros, enquanto os virtuais vão aparecendo e se empilhando na tela do monitor estrategicamente colocado de frente à mesa para que todos possam se ver. A Mulher A saúda cada um que entra com entusiasmo juvenil, chamando-os por apelidos carinhosos.
– Olá, Ludovico! Saudade de ti, rapaz!
Em seguida, alternando o tom para o arrogante:
– Eu não estou conseguindo ouvir o Ludovico. Alguém pode ver o que está havendo?
Eles, entre si, se conhecem bem, estão há anos unidos nessa luta para manter a Sociedade de pé em meio a um dédalo de dívidas e de governos que odeiam cultura. Eu sou ali meio que o ilustre convidado, Aquele Que Pouco Dá As Caras e Do Nada Resolveu Aparecer, espécie de espião infiltrado ou de Alien, o Oitavo Passageiro.
A assembleia, enfim, começa. A Mulher A toma a palavra; a B passa um batom rosa-bebê; a C não sai do celular, embora atenta ao que se passa. Volta e meia, alguém pega o álcool em gel e besunta as mãos, e quando é minha vez de fazer, a C, que está sentada ao meu lado, diz:
– Está viciado.
O Homem B faz elogios ao A, afirmando que ele está dando a alma pela Sociedade, desdobrando-se o mais que pode e, até mesmo fazendo serviço de office-boy e faxineiro, já que os funcionários, que outrora pululavam no escritório da sede, há tempos se escafederam. A Mulher A, para expressar solidariedade, forja no rosto uma expressão compungida e alisa o ombro do Homem A, como se dissesse: “Ah, meu amigo, que alma boa és tu!”
Os virtuais falam, questionam, replicam, treplicam. De vez em quando, um desliga a câmera e some, deixando no lugar a sua imagem-totem. Já começo a pensar como farei para me desembaraçar daquele nó que não mostra sinal de desatar. A Mulher A volta e meia se inflama e de seus olhos saem faíscas; A B segue de batom; a C, ao celular, gravando áudios sussurrados. Escorrego os olhos para a tela do aparelho e flagro uma MARIETA na sua lista de amigos do zap. Será a Severo? Em seguida, na marra, abro uma brecha na trama:
– Bom, eu vou precisar ir embora. Nem vou me despedir dos virtuais pois entrei mudo e estou saindo calado, então acho que eles nem me viram.
A Mulher B se levanta e se interpõe no meu caminho para o ataque final:
– Foi um prazer te conhecer.
Acho que dou dois beijinhos nela para retribuir a consideração e saio. Ganho a rua. Nove horas da noite e o Centro da cidade está deserto. Nas calçadas, sob as marquises, mendigos jantam. Caminho célere na direção do metrô, deixando para trás o palco da assembleia, seus atores e truques.
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“Seis Personagens à Procura de um autor” ou “Sei Personaggi in Cerca D´Autore”, de Luigi Pirandello, me parece desses títulos que, uma vez criados, passam a engrossar o caldo de cultura e o vernáculo da língua como se sempre tivessem existido.
Rodrigo Murat é escritor
Imagem:Pirandello – DR
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