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SER OU NÃO SER (YOUTUBER)

SER OU NÃO SER (YOUTUBER)

A temporada de gripe acirrou a necessidade do viver virtual. Já que pegar na mão anda complicado, que peguemos no mouse e criemos um totem, um tutorial, um cyber-espantalho, um megaego.

Freud dividiu as instâncias psíquicas em: Id, Ego e Superego. No Id estariam as pulsões com que o Ego – esse erê folgazão – adora brincar e que o Superego – esse tiozão ranzinza – recalca. Aí vem a tecnologia da informática e funda o conceito de I.D. – “sistema operacional baseado em Unix que identifica os usuários dentro do kernel por um valor inteiro sem sinal chamado de user identifier”. Do Id ao I.D. varreu-se um século, e cá estamos nós, refestelados em nossas bolhas de pixel.

Recentemente entrei em contato com uma dessas bolhas Ids-I.D.s que borbulham por aí e fazem a algazarra dos algoritmos. Trata-se de um escritor bem pensante e apessoado, que, em vídeos monetizáveis, discorre sobre temas que estão na ordem do dia, sempre com o tom meigo-fofo de “seu amigo para todas as horas”. São mais de 500 mil inscritos no canal, o que dá a ele o status de youtuber-celebridade, algo comparável – guardadas as devidas proporções e para efeito de graça – a uma Giselle Bündchen, que ao invés de Gucci desfilasse Nietzsche, e a um Neymar, que ao invés de bolas, chutasse ideias.

Entre comentários políticos e pitacos filosóficos, ele abre brechas para falar de si e de seus familiares, como se o meio milhão de seguidores fosse a sua panela de amigos, num processo, talvez inconsciente, de humanização do personagem. Como um Hamlet cibernético, troca o “ser ou não ser” pelo “curtir ou não curtir”, e, ao final, pede o dízimo: um like.

Capricorniano que sou com ascendente em mim mesmo, ou seja, em Capricórnio, não tenho como nessas horas não pensar em J.D. Salinger, Rubem Fonseca, Thomas Pynchon, Dalton Trevisan, Raduan Nassar, Arthur Rimbaud e outros escritores que – regidos ou não por Saturno, e cada qual à sua maneira – subiram a ladeira escarpada do sucesso fugindo de holofotes. Que elegância dessa gente deixar que suas palavras encontrassem seu público sem o empurrão adicional do escritor em pessoa.

Escrever, por si só, já é um ato de vaidade. Tanto quanto mostrar coxas, glúteos ou o peitoral no Insta, o que está em jogo é a exibição de “pensamentos sarados”, e a necessidade de aceitação é a mesma. Escrever já é “pedir like”. Então, pra que aparecer?

Os tempos são outros, dirão alguns. Aparecer é preciso. Sim, é preciso. (Preciso no sentido de necessário, não no sentido que Fernando Pessoa usou de: exato, certo, definido.) Em meio a tantas cabecinhas lutando para sobreviver no mar midiático, é necessário também ser tronco e membros. Só espero poder sê-lo com a melhor das dignidades.

Rodrigo Murat é escritor e escreve no blog rodrigomurat.wordpress.com

Agência Difusão

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