Fui assistir ao documentário do Kleber Mendonça Filho – “Retratos Fantasmas” – e saí do cinema com lágrima nos olhos. Engraçado ter vontade de chorar num filme que nem propriamente triste é, embora embebido das dores do passado que não volta e que faz evocar aquele verso do Drummond gravado na calçada da quadra onde ele morou em Copacabana: “Toda história é remorso”.
No filme, a história particular do diretor se mescla à História oficial do país, que, por sua vez, é atravessada pela ascensão e queda dos cinemas de rua – no caso, os cinemas de rua de Recife -, com seus letreiros gritando títulos que parecem palavras de ordem ou mensagens subliminares para pedestres distraídos. Kleber reúne todos esses elementos num jogo de xadrez afetuoso até o inteligentíssimo xeque-mate da sequência final, num carro de aplicativo, ao som de “Rise”, de Herb Albert. (Como foi bom relembrar “Rise” e sair da sessão com a melodia na cabeça!)
O filme é dividido em três partes: “O apartamento de Setúbal”, “Os cinemas do centro de Recife” e “Igrejas e Espíritos Santos”. Na primeira, o diretor abre como se fosse um diário íntimo de família e mostra em detalhes o apartamento onde morou, inicialmente com a mãe, no bairro de Setúbal, usado como locação para alguns de seus filmes – entre eles, o média “Enjaulado”, de 1997, o curta “Eletrodoméstica”, de 2005, e o longa “O Som ao Redor”, de 2012. Kleber tinha 10 anos quando foi morar lá, em 1979. A mãe, Joselice, separada do pai, morreu em 1995, aos 54 anos, e Kleber permaneceu no endereço por mais uma década, acompanhando a verticalização do bairro, enquanto ele próprio se verticalizava como um dos grandes do audiovisual brasileiro. Na segunda e na terceira parte, Kleber sai do apartamento e cai na cidade em imagens de arquivo, filosofando sobre questões relativas ao tempo numa narração algo monocórdia como alguém que observa com lupa o patrimônio histórico e pessoal num mosaico ultra-lírico de distanciamento e aproximação. Zoom in e zoom out, que é o que fazemos todos, o tempo todo, enquanto vivemos e, ao mesmo tempo, avaliamos nossas vidas: o que se passou, o que foi, o poderia ter sido.
Em muitos momentos, “Retratos Fantasmas” parece um making of dos outros filmes do diretor, revelando o que está por trás das imagens. Maeve Jinkings, a atriz, em “O Som ao Redor”, e Maeve Jinkings, a amiga, jantando no apartamento do diretor, sentada à mesma cadeira usada anos antes no set de filmagem. Típico exemplo de “mise-en-abyme”, o filme fotografa a alma do fotograma.
Minha mãe morou em Recife quando se casou, em 1951, e por lá ficou com meu pai, numa casinha em rua paralela à praia de Boa Viagem, aproximadamente até 1954. Lá nasceu minha irmã mais velha. Grande parte do filme cobre esse período, quando os grandes cinemas surgiam na cidade com aquela pompa de palácios para os sonhos hollywoodianos.
Meus pais devem ter visto muitos filmes naqueles cinemas. Então, é como se o álbum de fotos de Kleber fosse um pouco meu. Aquela Recife passou aos olhos de minha mãe e de meu pai – que não estão mais aqui – e toda a fantasmagoria do filme ganhou carne em mim.
Adoraria poder assistir ao filme com eles e perguntar-lhes: “Vocês foram a este cinema?”, “Lembram desse quarteirão?”, “A quantas quadras da casa de vocês ele ficava?”. Infelizmente não é mais possível. A partir de um certo ponto da vida, perguntas ficam sem interlocutores.
Enquanto isso, sob o céu de Suely e entre cinemas, aspirinas e urubus, Kleber Mendonça Filho, a cada filme que lança, vai se firmando como um patrimônio cultural do país e do mundo.
Rodrigo Murat é escritor
Imagem:https://meuroteirordc.com.br/recife-antigo-ruas-e-pontes-que-contam-historias/
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