Quando pulamos sete ondas no mar ou guardamos sementes de romã na carteira para atrair boa sorte na noite do último réveillon, não podíamos imaginar que 2020 – por muitos carinhosamente chamado de Vinte-Vinte – fosse nos pregar uma peça, nos dar o calote e nos passar a perna. Fato é que, transcorridos três meses de seu início promissor, jornais, sites e grupos de whatsapp estamparam “PANDEMIA” na primeira página e a quarentena se instalou em nossas vidas. Os endereços comerciais baixaram as portas – cinemas e teatros aí incluídos –, as ruas ficaram vazias, e só o que nos coube foi remendar o cotidiano com ócio, lazer e trabalho em patchwork.
Vieram as lives.
“Walk down Portobello Road to the sound of reggae/I´m alive/I`m alive and vivo muito vivo…”
Faz meio século que Caetano escreveu esses versos, e faz meio ano que a gente não faz outra coisa senão deslindá-los – vivos, muito vivos! –com shows à distância, festas virtuais, cursos online, filmes por streaming e, em meio a todo frenesi tecnológico, o Teatro gritou:
– Ei! E eu?
E aí ele veio. Espetáculos foram adaptados para o novo modal e outros foram criados. Monólogos, no geral. Atores sós representando para espectadores sós, cada um no seu quadrado com álcool em gel e máscara, subvertendo a práxis evocada por Amir Labaki em entrevista na “Folha de São Paulo” de 20/09/20:
“Por mais que a gente tenha televisões enormes em casa e apague a luz, o cinema é um sonho coletivo. Você sai para sonhar junto com outras pessoas naquele espaço.”
Por ora, é preciso sonhar separado. Não é o ideal, mas é o que se tem.
Vejamos como é o negócio: o espectador entra na sala. Cumprimenta os demais com “boa noite”. Alguns desejam “merda”. Enquanto o espetáculo propriamente dito não começa, na tela, o aviso: EM INSTANTES. O público – esse polvo elétrico – segue escrevendo platitudes. Soa o terceiro sinal – a velha pancada de Molière para reforçar a ideia de que o que está por vir é Teatro. O ator entra em cena e começa a dizer o texto com aquela embocadura de palco. Se fosse filme ou série, o espectador estranharia, mas como é Teatro, há esse acordo tácito de uso da palavra como joia que se lapida. O espectador embarca na egotrip – ainda que um e outro continue digitando e criando uma espécie de ruído paralelo. Ao final, mil, dois mil, cinco mil espectadores aplaudem sem que possam ser vistos nem ouvidos, e o pano cai.
O bom de tudo é perceber que o Teatro – esse fogo roubado dos deuses por um Prometeu dionisíaco –, mesmo com todos os ventos contrários, permanece vivo e fundamental – ainda que nessa janela emprestada do cinema.
E no pós-pandenóia, como será? Voltaremos de imediato às salas físicas para sonhar em grupo? Sobreviverão os espetáculos remotos? É possível. É possível que tudo conviva: a palavra como elo, a palavra como método, a palavra como vacina.
Texto: Rodrigo Murat.
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