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TORTO ARADO

Enfim, li “Torto Arado”, o romance-sensação do autor baiano Itamar Vieira Júnior, há meses na lista dos mais vendidos. Fico sempre intrigado com esses títulos que conseguem furar a bolha do anonimato e cair no gosto do público e da crítica. Neste caso, faz todo o sentido. O livro é bem escrito, costurado, coeso – parece que o autor levou uma década retrabalhando-o – o que resultou numa narrativa enxuta e desafetada:
“O velho não tocou em nenhuma parede. Não retirou nenhuma forquilha. O tempo se incumbiu de desmanchar a casa antiga. Sem abrigar mais nossas vidas, parecia se deteriorar numa urgência própria da natureza que a envolvia. A cada chuva forte uma parede desmoronava e, por fim, o vento completou sua luta. A parede de terra, do barro que era o chão de Água Negra, voltou a ser terra de novo. Nasceram ervas e flores minúsculas em meio à umidade que surgia com o orvalho e com a chuva que caía quando era da vontade dos santos. Fiquei atenta a tudo o que acontecia, sabia que nada retornaria.”
“Torto” já estava na minha lista de desejos há tempos quando, há alguns sábados atrás, saí com duas amigas que conversaram a respeito e compararam suas impressões de leitura. Aí, não teve jeito: corri para a livraria mais próxima, comprei o volume e devorei suas duzentas e cinquenta páginas como alguém que tenta corrigir um atraso. Conversamos por Whatsaap:
Eu: Comecei o Arado. Por ora, texto impecável. Tudo do tamanho do que pretende ser contado. Menos empolado que Hugo mãe, à altura de um Raduan.
Amiga 1: Engraçado, eu pensei muito no Hugo Mãe comparando, e prefiro a narrativa do Hugo Mãe.
Amiga 2: Quando terminar esta primeira parte, comentamos.
Eu: Li pouco o Mãe mas não consegui concluir o que tentei. Me pareceu haver um certo malabarismo com as palavras. A tal “plumagem verbal” que eu ouvi de alguém sobre os escritores que escrevem bonito. Hugo Mãe deve ser narcísico – como todo escritor – e não disfarça bem. Tive a sensação de entrever o bastidor, o truque da sua técnica.

(5 dias depois)
Eu: Terminei de arar. Achei muito bom. Só uma frase me soou a “vejam como escrevo bem e bonito.” Já cunharam o termo “regionalismo mágico”? Já, já pinta. Ao longo do livro, ele vai, ok, se panfletizando – entortando? – mas nem isso me incomodou, pois achei que a narrativa continua de acordo com o estilo, ainda que o retrato em pretos e brancos do campo soe um pouco clichê: exploradores maus, explorados tentando se adaptar a partir disso. E dá-lhe jarês e vendetas. Acho que isso explica o sucesso do livro. Ele alia poesia de paisagem à denúncia social. Dá seu grito. Recria essa urgência de dar lugar de fala aos Sem-Língua. O Leitor percebe que tem algo (elo)quente em mãos. Acho que um autor precisa disso: lavrar uma queixa-crime. Arar, no caso. Lá pelas tantas, tem até um Quem Matou Marielle na figura contestadora do Severo. Não senti o abismo entre as três partes e acho saboroso o glossário: buriti, tapera, umbuzeiro, viração. Dá vontade de saber usar essas palavras. Pra variar, li bem rápido, não entendi tudo, estava curioso para saber como acaba. Vou tentar reler uma hora dessas, com mais errância.
Amiga 1: Você falou em regionalismo mágico, eu pensei muito em cem anos de solidão. Como disse, algumas coisas me incomodavam na narrativa.
Amiga 2: Concordo muito com o que você diz, mas a “crescente panfletização” me irritou um bocado, confesso. O que achei incrível, na primeira parte, foi que até quase o fim não sabemos qual das irmãs perdeu a língua. Muita maestria narrativa.
Talvez eu tenha me sentido bobamente instigado a uma disputa intelectual, mas entre amigos isso é permitido.
“Torto Arado” foi lançado pela Editora Todavia em 2018 e venceu os prêmios Oceano e Jabuti. Segue na lista dos mais vendidos, atualmente na quarta posição.

Rodrigo Mutat é escritor

Imagem:pixabay.com

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