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TRANSAR É O MAIOR BARATO

TRANSAR É O MAIOR BARATO
Enquanto palavras novas como sororidade vão sendo dicionarizadas, outras vão, pouco a pouco, pegando o chapéu e saindo de fininho. Hoje, quem com menos de quarenta conseguiria entender esse diálogo abstruso:
– E aí, meu chapa, como é que foi a transa ontem com o teu pai? Ele topou te dar aumento de ordenado?
– Nada. Você está por fora. O coroa chegou de pilequinho, todo ouriçado. Não deu nem pra dar um plá. Manja?
– Corta essa, amizade. Cascata. Está querendo me embrulhar, me deixar baratinado? Você disse que o coroa está cheio da erva. É o maior grã-fino. Qual o galho?
– Pode crer, o coroa é gente fina, sim, mas vamos dar um giro, meter uma praia. Ficar nesse papo careca não tá com nada, vai me fundir a cuca e me deixar ainda mais grilado. Já não basta essa falta de gaita, de tutu? Estou liso, liso!
– Barra limpa. Ir à praia vai ser o maior barato. Vai nos tirar da fossa.
Nos anos 70/80, transa era uma carta coringa na manga do paletó de qualquer falante antenado, usada pra tudo. Até o Caetano tem um álbum com esse nome, considerado por muitos o melhor do baiano. Depois, o termo foi ganhando conotação sexual e aí se fixou. Transar agora não quer dizer outra coisa senão transar, e hoje em dia seria impensável alguém propor:
– Vamos lá em casa transar um arroz integral? Depois, se você quiser, a gente pode transar um som.
A língua é viva, se move, caminha, dá cambalhotas, e vai tirando as palavras de seus habitats naturais. Termos do jargão psicanalítico como histérico, bipolar, psicopata, neurótico, neurastênico rapidamente vão caindo na boca do povo e virando gíria. Quem nunca ouviu:
– Fulano é o maior tarja preta!

E o que dizer de expressões como “inserido no contexto”, “a nível de” e “zona de conforto” que, de tão gastas, clamam por arquivamento? Com a palavra, o doutor Pleonasmo:
– Enquanto linguista e a nível de estudioso da língua, eu acho tudo isso de uma preciosidade riquíssima.
Há dez anos atrás, fiz uma residência artística com um diretor teatral e a cada meia dúzia de frases, ele dava um jeito de inserir no contexto o substantivo lugar. Até então, nunca tinha presenciado lugar em tantos lugares, mas depois comecei a perceber que era mais um cacoete verbal da classe artística, mais uma das inúmeras afetações que acometem essa colmeia soit disant inteligente, e sempre que alguma abelha intelectual quer dar um voo rasante, apela:
– Está sendo maravilhoso fazer essa peça. O meu personagem me leva pra um lugar! Sabe esse lugar da dor, da desesperança, do puro niilismo que vai de Buda a Beckett?
E agora surgiu o tal do cringe. Em inglês, cringe é verbo e quer dizer encolher-se, rebaixar-se. Em português, não sei como usa. Talvez eu seja cringe e não saiba.
Maneiro de montão.

Rodrigo Murat é escritor

Imagem de Clker-Free-Vector-Images por Pixabay

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