UMA CARTA PARA CAIO F.
UMA CARTA PARA CAIO F.
Corriam os anos oitenta. Em SP existia uma revista chamada “A-Z”, da qual eu era assíduo leitor e para a qual sonhava escrever. Pensei então numa pauta e enviei-a por carta aos cuidados do editor: Caio Fernando Abreu. Dele já tinha lido os seus morangos mofados, os seus dragões que não conhecem o paraíso, e tinha-o em alta conta. Dois meses depois, para minha surpresa tardia, vem, pelo correio, a resposta datilografada:
“São Paulo, 2 de novembro de 1988.
Rodrigo, sua carta (curioso: escrita no dia do meu aniversário) é ótima. Não respondi antes porque estava viajando, passei um mês entre Berlim e Londres (não pense coi$as de mim: foi tudo pago pelo governo alemão), voltei há – hoje – exatamente duas semanas. E desde então ando meio surtado, tentando desesperadamente aterrissar. Não sei se estou conseguindo. Não sei se devo tentar mesmo conseguir. Na verdade, não sei nada.
Descobri, nos últimos tempos – melhor: concluí, não descobri nada – que São Paulo é Dallas. Trata-se de subir na vida. Trair, puxar tapetes, mentir, blefar: legítimo vale tudo. Típico de Dallas é as pessoas se tratarem umas às outras não como pessoas, mas como canais, entende? Não sou muito canal de nada, não. Às vezes até sou, mas por paixão pura pela obra alheia. Aquelas coisas de quem, vivendo em Dallas fisicamente, mentalmente ainda habita algo como a Bloomsbury de Virginia Woolf e Forster ou a Paris da velha e boa tia Gertrude Stein.
Enfim.
Enfim-ponto sempre é bom, encerra o que deveria ser uma continuação.
Se você quiser colaborar aqui com a A-Z, falemos sobre. Mas pense numa outra pauta. “Novas Cantoras” paulistas não, acho que já foi dito tudo sobre elas.
Gosto do seu texto e – a julgar por ele – de você também. Dê notícias.
Caio F.”
Depois disso nos conhecemos pessoalmente. Ele veio ao Rio para suas costumeiras incursões culturais, e foi ao cinema. Encontrei-o à saída da sessão – ele e sua amiga Jacque – e de lá seguimos, no carro dela, para um restaurante japonês quatro bairros adiante. Era meio que o encontro do Fã com o Ídolo, e eu – o Fã – não conseguia tirar da cabeça que estava diante do famoso escritor gaúcho radicado em São Paulo cuja prosa já me atravessara o peito. Na flor em botão dos meus vinte e poucos anos, eu quase não conseguia me comunicar, e passei a tarde-noite com a sensação de que a conversa evoluía aos trancos, como que rodada à manivela. Nada do que eu dizia me soava espontâneo ou inteligente. Era como se eu estivesse dublando a mim mesmo, aproveitando para mastigar cada sushi a tempo de preparar a próxima fala. Também para ele não deve ter sido tão fluido. Estar com alguém que espera algo de nós nunca é muito confortável, embora eu não saiba dizer hoje – três décadas transcorridas – o que de fato eu esperava dele e daquele encontro regado a shoyu. Provavelmente só de estar com Caio Fernando Abreu – o homem e a grife – já me garantia uma promoção pessoal. Jacque permaneceu calada o tempo todo, como a sugerir “eu estou aqui, mas é como se não estivesse”, deixando o caminho livre para o que poderia vir a ser uma nova amizade, um engate de namoro, ou meramente uma parceria profissional entre escritores.
Não fomos nenhuma das três possibilidades – nem amigos, nem namorados, nem parceiros. Só nos veríamos mais uma vez – pelo menos que eu me lembre – no lançamento de seu livro “Ovelhas Negras” em 1995. Depois de esperar na badalada fila entre famosos, cheguei com o meu exemplar para o autógrafo, e tive a impressão de que ele não sabia ao certo quem eu era. Talvez uma imagem borrada na lembrança. Mesmo assim, reunindo forças, ele escreveu na dedicatória:
“Pro Rodrigo, já sem gás, mas ainda com carinho do seu amigo Caio F.”
Dele guardo também o convite impresso para o lançamento de seu livro “Onde Andará Dulce Veiga?” e um cartão postal enviado de Nuremberg:
“Rodrigo:
Ando em retiro, mergulhado num romance (literário, claro, não amoroso) completamente louco, portanto, feliz. Embora apavorado. Saudade. Caio F.”
Saudade também, Caio. Saudade da vida que passa e não volta; saudade de receber cartas e poder manuseá-las e cheirá-las e abraçá-las como se fosse um carinho remoto; saudade da nossa quase amizade efêmera que, se não alcançou o ápice do convívio e da intimidade, ao menos legou ao tempo esse esboço de afeto compartilhado.
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Caio Fernando Abreu viu a luz do dia em 12 de setembro de 1948 e apagou o abajur em 25 de fevereiro de 1996. Seus livros agora falam por ele e o iluminam.
Texto: Rodrigo Murat é Escritor
Imagem: Caio Fernando de Abreu, escritor e jornalista Alexandre Tokitaka/Dedoc