USAR A LÍNGUA NÃO É MOLE – POR RODRIGO MURAT
Escrever não é fácil. A gente põe uma palavra para fora, e ela rápido agarra-se à tela, impondo um canal de entendimento, e excluindo outros. Amor dificilmente quererá dizer outra coisa que não amor; ódio, que não ódio.
As palavras são o que dizem; as palavras gostam de se parecer com o que significam. Por isso é tão trabalhoso levar uma ideia do neurônio ao dedo. É preciso muito jogo de sinapse para que o que chegue ao receptor esteja o mais
próximo possível daquilo que se quer expressar.
Uma vez que as escolhas tenham sido feitas, é comum que elas se voltem contra o autor, pois as palavras, em sua maioria, não são capazes de carregar em seu bojo todos os sentidos de que o autor gostaria. Se eu escrevo, por
exemplo, como fiz em artigo aqui publicado, que “Poderia, como li em Flaubert, desejar a essa gente um Dilúvio para que eles possam navegar em seu tanque”, perco a oportunidade de ser, a um só tempo, compassivo e revanchista. Pois, ao desejar algo mau a “essa gente”, não só generalizo todo um grupo, como me excluo do pacote. Nossos pensamentos são mais complexos do que o uso que fazemos deles.
Há escritores de bom conteúdo que pecam por serem excessivamente pernósticos numa atividade que já é, por si, um convite à afetação. Há os pernósticos curtos – aqueles que amarram seus textos com frases breves – e os
pernósticos longos – aqueles que levam seus textos para passear, proustianamente, em prados repletos de vírgulas e de ponto-e-vírgulas.
Conheço um pernóstico curto, de relativo renome, que é obcecado por travessão. Seus textos, publicados semanalmente em jornal, são de tal forma atravessados por travessões, que lê-lo é como praticar baliza com os olhos: é preciso cuidado para não esbarrar entre uma oração e outra.
Outro dia, ele teve o despudor de usar “dois pontos” no seguinte caso:
“Para um líder sectário que cultiva nicho: funciona.”
Das duas, uma: ou o dito cujo quis libertar o sinal das amarras sintáticas às quais está atrelada, ou o cujo dito escreve como fala – o que é uma prática cada vez mais corrente.
Mais adiante, no mesmo artigo, barbarizou:
“A combinação das leis brasileiras impõe a vacinação. Ponto final”.
Ponto final por escrito! Mais um parágrafo e ele escreveria:
“Perguntei o que ele pensa disso, e ele me respondeu com reticências.”
Ou: “Ela disse que eu sou um pouco, abre aspas, misterioso, fecha aspas.”
Pensei em escrever-lhe e-mail comentando tais excessos, mas fiquei com medo de uma reação nervosa – escritores costumam ser irascíveis:
“Texto excessivo: uma vírgula – meu texto é maravilhoso – e ponto final.”
Mas – é isso. Vamos nos divertindo com todas essas travessuras, que a vida é sorvete, e “contanto até que” ela não derreta…
P.S. “Contando Até Que” é o nome de uma música da LETRUX e está em seu novo álbum.
Rodrigo Murat é escritor e escreve no blog rodrigomurat.wordpress.com
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