a
© 1999-2022 Agência Difusão.
HomeArtigosVESTÍGIOS DO ÓDIO

VESTÍGIOS DO ÓDIO

VESTÍGIOS DO ÓDIO

Se Kafka escreveu “A Metamorfose”; Shakespeare, “Ricardo III”; Dostoievski, “Crime e Castigo”; Herman Melville, “Bartleby, O Escrivão” e Gogol, “Almas Mortas”, é porque opressão e ódio são temas bem mais antigos do que pode supor a nossa vã filosofia.

Sempre me espanta observar no comentário de alguém a presença da expressão “hoje em dia”, como se de fato houvesse alguma coisa que acontecesse “hoje em dia” que não tivesse acontecido antes, e sempre, e o tempo todo, desde que o mundo é mundo e o homem foi verticalizado. Bem, mas naturalmente que há o novo – coisas de aparência, não de fundo. A Internet, por exemplo. As redes sociais. Tudo ferramenta nova para mover antigos sentimentos – amor e ódio, só para citar dois fundamentais.

O negócio se resume no seguinte: nessa rede de ódio, todo mundo está pedindo amor. Acontece que não tem pra todo mundo. Muita gente pedindo aos berros e pouca gente oferecendo de volta.

No filme “@Artur.Rambo – Ódio nas Redes”, em cartaz nos cinemas, o diretor Laurent Cantet parte de um caso real para exemplificar um processo de cancelamento. No caso, um escritor que, ao se projetar com um livro sobre sua mãe algeriana, e ser transformado no novo bombom midiático da estação – ele, além de lindo, tem olhos tristes que pedem colo –, tem seu passado revirado e comentários racistas, sexistas e antirreligiosos postados por ele nas redes sob o pseudônimo de Artur Rambo – trocadilho com Arthur Rimbaud – são trazidos à tona.

O filme não tem a força de “Entre os Muros da Escola”, título de Cantet que venceu a Palma de Ouro do Festival de Cannes em 2008. Mesmo assim, tudo é muito bem filmado, o ator protagonista Rabah Naït Oufella é ótimo, e há pelo menos uma cena fundamental que aprofunda a discussão e justifica a trama. É quando o irmão adolescente do escritor cancelado cobra dele uma reiteração da defesa dos ideias postados dos quais ele agora, para se regenerar perante a opinião pública, se diz arrependido. Como um mediador de um grupo social ávido de reparação – no caso, os adolescentes de um bairro periférico de imigrantes de Paris – Artur Rambo paira como um ídolo que agora se ajoelha e pede perdão. Ao pedir perdão, renuncia à causa. Mas a causa existe e continua inquietando. Quem irá então mediá-los a partir de agora? Quem será o porta-voz de suas ânsias e azeitar a máquina de ódio?
E a tal da liberdade de expressão? E a tal das forças desarmadas? Se tudo continuar caminhando como está, em breve alguém terá de explicar porque dois e dois são quatro. E aí será preciso um novo Caetano que rediga “tudo certo como dois e dois são cinco”.

Em matéria publicada pela Folha de São Paulo de 1º de maio assinada por Rafael Balago, leio que “a Pen America, entidade de defesa pela liberdade de expressão, apontou que ações para barrar livros em escolas e bibliotecas públicas foram feitas por autoridades locais em ao menos 26 dos 50 estados do país no último ano. (…) Os defensores dos vetos dizem querer poupar as crianças de conteúdos por eles considerados pornográficos ou que podem gerar discussão social, como obras que discutem o racismo, pois avaliam que elas prejudicariam o desenvolvimento. Por essa lógica, é como se, ao entrar em contato com materiais que discutam questões de gênero, estudantes fossem estimulados a se decidir por uma transição.”

É chocante que haja quem de fato acredite que a melhor maneira de tentar impedir que as outras pessoas vivam as suas vidas como elas bem entendam, é sonegando-lhes informações. Como se isso fosse possível. Como se isso fosse maduro e desejável. Como se isso fosse para protegê-las. O mal quase sempre se traveste de bem para fazer girar sua roda de más intenções, e é triste ver que tantos caiam na arapuca dos algozes tomando-os por salvadores.
Enfim, ninguém há de negar que a trama da vida é bem urdida.

Rodrigo Murat é escritor
Rodrigo Murat

Imagem: Reprodução, Arthur Rambo.

Share With:
Rate This Article

redacao@agenciadifusao.com.br