VINÍCIUS, CLARICE E COINCIDÊNCIAS
I
Eu não sei vocês, mas comigo as sincronicidades estão por toda parte. Outro dia, escutando Vinícius de Moraes enquanto preparava o café da manhã, fui abrir a porta da varanda e, nesse exato instante, Vinícius cantou: “Tranca bem a porta, amor/fecha a janela e passa a tramela/por favor” – versos da canção “Tudo na mais santa paz”. Depois, fui trocar a lâmpada da cozinha e ele sublinhou: “Deixe a lâmpada acesa/porque o perdão também cansa de perdoar” – versos da canção “Regra Três”. Saí para caminhar, quando voltei, religuei o som e ele: “Você voltou, meu amor/Alegria que me deu” – versos da canção “Samba da Volta”. Botei ovo pra ferver e mais uma vez o Poetinha não teve pudor: “Para viver um grande amor/conta ponto saber fazer coisinhas/ovos mexidos, camarões, sopinhas” – versos da canção “Para Viver um Grande Amor”. Parece mentira, mas é verdade.
Tudo isso também pra dizer que Vinícius voltou pra minha vida. Não sei como pude ficar tanto tempo afastado de sua música. Quando criança, suas canções povoavam meu imaginário. Minhas irmãs – uma década mais velhas – tinham discos dele e eu ficava absorvendo como uma esponja aquele universo amoroso tão distante de mim e de minha realidade imberbe. Seriam essas coincidências todas um indício de que Vininha também estava saudoso? Vá saber!
II
Dia dez de dezembro de 2020 abri o jornal de três dias antes e deparei com uma matéria sobre o centenário de Clarice Lispector a ser comemorado naquele dia. Cem anos antes daquela manhã abafadiça carioca, nascia Clarice ucraniana. Achei uma feliz coincidência – eu que de Clarice tenho a irmandade literária (modéstia inclusa). Até hoje lembro da sensação que tive quando li, nos anos 80, um conto de “Laços de Família” e caí extasiado no colo da personagem – a dona de casa que volta de um passeio no Jardim Botânico, e que, do ônibus, avista um cego na calçada. Começava ali uma estreita ligação afetiva.
Na tarde do mesmo dia – dez de dezembro de 2020 – fui dar um passeio no Leme, bairro carioca onde morei de 1999 a 2004, e para o qual retorno de quando em quando em busca do tempo vivido. Andando pelo calçadão da praia, decidi ir até o Caminho dos Pescadores, e qual não é minha surpresa ao deparar com a estátua de Clarice com três rosas rosas ao colo. Logo apareceu um cinegrafista de TV e começou a capturar imagens para o noticiário da noite. Juro: não foi premeditado. Clarice me atraiu até seu busto em bronze sem que eu estivesse consciente. Não saí de casa com esse propósito – o que mostra que a vida nem sempre é feita de propósitos e, de quebra, ainda reserva gratíssimas surpresas.
Rodrigo Murat é escritor e escreve no blog rodrigomurat.wordpress.com
Foto: Halley Pacheco de Oliveira/Estátua da escritora Clarice Lispector (1920-1977), com o cachorro Ulisses, feita pelo artista Edgar Duvivier, no Leme, Rio de Janeiro.
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