VINIL VERDE
Em julho de 1975, minha mãe pôs os quatro filhos no TL verde-abacate que ela tinha e nos levou para um tour de aproximadamente dez dias pelas cidades históricas de Minas – Ouro Preto, Congonhas, Sabará, Tiradentes, Mariana, Gruta de Maquiné e da Lapinha. Eu tinha só 9 anos mas, segundo consta no anedotário familiar, era o mais interessado em escarafunchar os meandros das relíquias dos museus e das igrejas. Bem, capricorniano costuma ser barroco de berço, e eu não devo ter fugido à regra.
No rádio do carro, fazendo a trilha sonora da viagem, tocavam sem parar duas canções de grande sucesso na época: “Gita”, de Raul Seixas, e “Felicidade”, do Lupicínio, na voz do Caetano. Aquela que diz: “Felicidade foi-se embora e a saudade no meu peito…” Agora que minha mãe foi-se embora – e não exatamente pra Minas –, eu ando com saudades de tudo: da pessoa que eu fui até aqui, da pessoa que eu serei daqui em diante.
Num tempo pré-Internet, as músicas novas dos cantores e compositores que eu amava – e amo – eram trazidas pelas ondas do rádio. Lembro da primeira vez que ouvi “Menina Veneno”, do Ritchie, “Banho de Espuma”, da Rita, “Grito de Alerta”, do Gonzaguinha na voz da Bethânia, “Você não soube me amar”, da Blitz. Eu tinha um radinho de pilha que dormia comigo debaixo do travesseiro, agora substituído pelo celular de bateria, e à noite, quando eu perdia o sono, eu ligava na minha estação preferida – a Rádio Nacional. Então, o “abajur cor de carne e o lençol azul” surgiram para mim numa noite branca dessas. “Banho de Espuma”, não. “Banho de Espuma” eu estava no Leblon – no carro, de tarde – e lembro que aderi instantaneamente àquele som imitando bolhas de sabão colado ao refrão: “Lá no reino de Afrodite/o amor passa dos limites”. “Grito de Alerta” foi voltando de uma viagem a Campos do Jordão, também no rádio do carro, com minha mãe e com uma de minhas irmãs. “Veja bem, nosso caso é uma porta entreaberta/eu busquei a palavra mais certa” me pareceram versos menos insinuantes do que o sucesso anterior da dupla Gonzaga-Betha “Explode Coração”. “Rompendo, rasgando, tomando meu corpo e então eu…” me davam o presságio de que algo meio erótico estava sendo dito nas entrelinhas, nessa idade dos 13 anos em que tudo recende a sexo.
Confesso que acho bastante funcional a existência das plataformas digitais, que nos conduzem de uma música a outra em questão de segundos, mas, por outro lado, tenho nostalgia da dificuldade e da expectativa de ouvir a música nova do Caetano, da Rita, do Chico, da Gal, do Gil, da Bethânia nas ondas do rádio. Cada vez que eles lançavam um disco – e eles eram anunciados com alguma antecedência pelos jornais, o que já levantava uma onda de curiosidade – era como se uma garrafa atirada ao mar com uma mensagem dentro tivesse chegado a mim.
Havia uma loja de discos em Copacabana chamada “Disco do Dia” e a ansiedade era tanta, que eles faziam pré-venda dos novos lançamentos. Reservámos a bolacha antes que elas chegassem da fábrica às prateleiras. Assim comprei, por exemplo, “A Ópera do Malandro”, álbum duplo com as canções do Chico para a trilha sonora da peça teatral homônima. Passava de ônibus na rua e olhava para o alto a fim de ver as capas dos discos que eram exibidas na vitrine da loja no segundo andar do shopping center que até hoje está lá, esquina de Nossa Senhora com Siqueira Campos.
Lembro também quando fui a São Paulo e peguei um ônibus na Lapa especialmente para ir na “Eric Discos” de Pinheiros – loja que ainda hoje existe na Arthur de Azevedo. Lá comprava as preciosidades paulistas que nem sempre conseguia encontrar no Rio: os discos de Itamar Assumpção, Eliete Negreiros, Arrigo Barnabé, Cida Moreyra, Fortuna, Vânia Bastos e do grupo Rumo.
Os LPs tinham um status hoje inexistente. Tudo bem que os vinis voltaram com força, são caros e fazem a festa dos colecionadores, mas não é a mesma coisa. Não se volta mais pra casa com música debaixo do braço com a sensação de um encontro íntimo a dois a ser desvendado aos poucos, faixa a faixa, e com o encarte nas mãos saboreando as letras.
“Gita”, do Raul, sempre que me chega aos ouvidos, me rebobina no tempo e me faz voltar a Minas. A Minas arquetípica da minha infância.
A música tem esse poder de máquina do tempo.
“Às vezes você me pergunta/por que é que eu sou tão calado? /Não falo de amor quase nada/nem fico sorrindo ao seu lado/Você me tem todo dia/Mas não sabe se é bom ou ruim/Mas saiba que eu estou em você/Mas você não está em mim”.
Mãe: eu estou em você e você está em mim – ainda que não mais ao redor.
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“Vinil Verde” é o nome de um curta-metragem do cineasta pernambucano Kléber Mendonça Filho sobre uma mãe e uma filha pequena às voltas com um disco de vinil verde macabro. Dele também podemos assistir, entre outros, “Bacurau” e “O som ao Redor”.
Rodrigo Murat é escritor