Meu pai era piloto de avião e instrutor de voo. Nos anos 60, a bordo de um bimotor de dois lugares, durante uma aula lá nas alturas, ele pediu ao aluno que estava pilotando que encetasse um looping.
O jovem aprendiz fez então com que a aeronave desse uma cambalhota completa. Depois, ao olhar para trás, o espanto: quede o professor? Sim, meu pai, que vivia com a cabeça nas nuvens, esquecera-se de afivelar o cinto e foi tragado pelo espaço aéreo.
Por sorte, estava com paraquedas e teve tempo de acioná-lo, aterrissando majestosamente sobre o jardim do palacete que um dia serviu de residência ao casal Henrique Lage e Gabriella Besanzoni. Pelo menos, é essa a história que corre no anedotário familiar.
Meu pai não está mais aqui para confirmá-la – morreria anos depois num acidente aéreo em Belém – e a memória de minha mãe anda no pisca-pisca. Ela agora deu para dizer que o paraquedas caiu sozinho.
Recentemente, saíram dois livros contando as biografias do empresário naval Henrique Lage e de sua esposa, a cantora lírica italiana Gabriella Gesanzoni, e a lembrança desse episódio envolvendo meu pai me voltou à lembrança.
Vale muito à pena lê-los: “Henrique Lage”, de Clóvis Bulcão, e “Vozes de Batalha”, de Marina Colasanti – Editora Record e Editora Tusquets, respectivamente – se somam para contar uma história de amor tendo a Itália e o Brasil como panos de fundo.
Marina, sobrinha-neta de Gabriella, veio da Itália criança para morar no Rio, mais especificamente na Chácara do Jardim Botânico, e por lá ficou com o irmão Arduíno de 1948 a 1959. Em seu livro, podemos revisitar a casa e conhecer suas histórias:
“Subindo a escadaria generosa chega-se ao enorme portão de cristal e ferro fundido. Do ingresso já se podem ver, em perspectiva, os arcos e o implúvio. (…) hesito em chamá-la piscina, embora sempre assim fosse nomeada. Hesito porque obedecia mais ao conceito de implúvio das antigas domus ou casas romanas.
E porque era de água natural, vinda de uma das três nascentes do parque, sem adição de cloro, o que, sendo as paredes de pedra, lhe dava aspecto de lago ou rio. Quatro sapos de bronze que eventualmente vertiam água enfeitavam os quatro cantos.
Vasos de gerânios floresciam ao pé dos sapos, e vasos de samambaias transbordavam seu verde diante de cada par de colunas. Nos cantos do pátio, quatro enormes jarrões de barro abrigavam jasmineiros que subiam até o terraço. Havia mesas de vidro e cadeiras que só serviam para compor o cenário.
O pátio dava-se ares de jardim. (…) Seis meses depois continuávamos morando na chácara. E ali moramos até 1959. A venda não era nada fácil, e mais difícil se fazia depois do tombamento. Henrique havia deixado, ao morrer, enorme dívida com o Banco do Brasil, contraída progressivamente ao longo dos anos para manter vivas suas empresas, ameaçadas pelas constantes mudanças nas políticas governamentais de subsídios à indústria naval e à do ferro. (…)
Há quem diga que Roberto Marinho planejava erguer ali a futura sede da Globo, mas o que consta é um projeto inicial prevendo a construção de um condomínio. A licença para comer as obras já havia sido concedida quando Carlos Lacerda tomou posse como governador e a embargou.
Esse projeto tendo sido vetado, foi substituído por outro, em que a área abrigaria um cemitério/parque infantil. (…) Uma produtora cinematográfica ítalo-brasileira pediu autorização para rodar algumas cenas no parque da Chácara. O filme era Yallis, a flor selvagem, com Vanja Orico como protagonista.
E, apesar do roteiro rocambolesco centrado em um grupo de antropólogos em expedição a Moana, cidade perdida e ligação entre as culturas inca e marajoara, as cenas para as quais precisavam da mata eram só enfrentamentos entre animais. Vi um pobre quati em pânico sendo lançado várias vezes contra uma jiboia que, bem alimentada, nem pensava em esmagá-lo como desejavam os cineastas. (…)
Outra filmagem foi feita no parque. Desta vez, transportaram para um gramado a casa tipo Tarzan que Arduíno e eu havíamos feito na beira de um dos lagos. Nem pediram licença. O filme chamava-se “Jangada” e não chegou a ser exibido. Não sei em que ponto da filmagem, um incêndio destruiu a película, e a jangada afundou.”
Quando criança, eu pedia que minha mãe me levasse ao Parque para ver se eu conseguia flagrar alguma gravação do “Sítio do Pica-pau Amarelo”. As cenas de mata, lago e cachoeira eram feitas lá, e eu era louco pelo Pedrinho.
Mais velho, em 1982, assisti no pátio do palacete à histórica montagem de “A Tempestade”, de William Shakespeare, com Miguel Falabella e Maria Padilha mergulhando de cabeça na piscina/implúvio para o encontro amoroso debaixo d´água.
Em 1994, assisti ao “Hamlet” do grupo Oficina e lembro de Zé Celso flanando pelas áreas sombrias sob os arcos enquanto se desenrolava o longo espetáculo de 4 horas de duração como um espectro vigiando o público e por vezes interagindo conosco.
O palacete serviu também de cenário aos filmes “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, e “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade.
Mais recentemente, participei como autor da montagem do espetáculo “Shakesparque” em que cenas extraídas de suas peças eram interrompidas por uma banda que executava os sonetos shakespearianos em versão musicada. A mim coube escrever as cenas de ligação que funcionavam como uma espécie de entreatos.
No lançamento do livro de Nélson Motta “Noites Cariocas” a festa foi lá, com a piscina vazia do pátio servindo de pista de dança, e foi muito bom poder abrir as asas e soltar as feras e cair na gandaia e entrar naquele espaço tantas vezes visitado.
Viver para lembrar: é para isso que serve. E sem medo do que virá, como nesta máxima de Marina Colasanti:
“Viver o presente, puxar os remos para dentro do barco e deixar a correnteza fazer o seu serviço.”
Rodrigo Murat é escritor
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